sábado, 16 de março de 2024

LEIAM A BÍBLIA Valério Mesquita mesquita.valerio@gmail.com “Pois não me envergonho do evangelho de Cristo, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê. (Romanos 1.16).” Não li, em minha vida, tanto quanto gostaria de ter lido sobre autores das literaturas brasileira, francesa, portuguesa e inglesa – as minhas prediletas. Enveredei cedo pela política gastando o meu tempo e o latim. Mas selecionei e degustei obras preferidas. O tempo passou. Sem vocação para a advocacia não me interessei pelos filósofos e juristas. Admirava-os sem conhecê-los bem. As biografias dos grandes estadistas, os episódios marcantes da história da humanidade me alimentaram por algumas estações. Enfim, tenho do mundo uma visão humanista, política, administrativa e social. A chamada cultura bacharelesca sintonizada com o homem e o ambiente em que vive. Sou um provinciano saudosista ou memorialista, como queiram. A leitura da Bíblia, desde a fase adolescente, pouco me seduzia, mesmo tendo estudado oito anos no Colégio Marista, ao qual muito devo a minha formação educacional e espiritual. Estudava-se a história sagrada de forma pedagógica dos livros da FDT. Quase não se compulsava a Bíblia. Percebo, hoje, o quanto isso me fez falta. Agora, na maturidade, senti uma imensa sede da palavra dos evangelhos, dos profetas, dos salmistas e das epístolas do maior de todos os apóstolos: Paulo de Tarso, o que fora perseguidor dos cristãos, que contribuiu para o martírio de Estêvão e que estava ao lado da guarda pretoriana quando Jesus foi crucificado. Aquele mesmo chamado depois por Cristo para receber o Espírito Santo de Deus e se tornar o mais importante pregador do cristianismo em diferentes partes do mundo até os nossos dias. Ah! Como seria bom se ele pudesse pregar ao vivo, em Aparecida, São Paulo, perante os maiores dignitários deste mundo, realçando sempre acima dele, mais a Santíssima Trindade do que o homem mortal, como atualmente assim não agem certos pregadores sem humildade através do aparato humano, do show gospel, da cantoria vulgar, da banalização do nome de Jesus Cristo e de falsos milagres por intermédio da televisão comercial. Se lhe fosse dada a chance de exortar que: “Só há um Senhor, uma só fé e um só batismo”. E que há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. “Sede uns para com os outros benignos, perdoando-vos uns aos outros como Deus vos perdoou em Cristo. Sede imitadores de Cristo e que ninguém vos engane com palavras vãs”. (Efésios). Falta em muitos doutores das igrejas da modernidade o sentimento da humildade que o apóstolo Paulo detinha. Disse ele em Coríntios: “Sou o menor dos apóstolos e não sou digno de ser chamado apóstolo pois persegui a igreja de Deus”, apesar de Cristo viver nele. E se lhe dessem a oportunidade de falar na rede Globo para todo o Brasil e principalmente para o Rio de Janeiro: “Se esperamos um Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Porque Deus não é Deus de confusão, senão de paz, como em todas as igrejas dos santos. Pois, Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir os sábios, e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir os fortes. E Deus escolheu as coisas vis deste mundo e as desprezíveis, e as que não são para aniquilar as que são; para que nenhuma carne se glorie perante ele”. Por isso, hoje proclamo: leiam a Bíblia. Além de instruir, ela santifica. (*) Escritor.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Sobre a expressão “de ovo virado” Padre João Medeiros Filho Este é um dos ditados bastante empregados por nossa gente. Consoante anotações do antropólogo e folclorista alagoano Théo Brandão, o dito popular é de conhecimento e emprego em vários estados brasileiros e algumas regiões de Portugal. De onde provém essa história de ovo virado? A sabedoria popular é de uma riqueza inestimável. As expressões, em geral, aparentemente desprovidas de fundamentos científicos e acadêmicos, partem da observação empírica. Uma vez criadas, caem como uma luva sobre a realidade individual ou coletiva. O adágio aqui aludido é de origem doméstica, nascido da observação do povo, especialmente do mundo rural. Há várias versões sobre a sua proveniência. A primeira delas seria uma analogia com o nascimento dos bebês, que durante um parto normal, colocam-se de cabeça para baixo, a fim de não trazer demasiado sofrimento à mãe. Da mesma forma, diz o saber popular que o ovo da galinha necessita estar com a parte mais fina para baixo, na hora de ser expelido. Caso esteja ao contrário, a ave passa por momentos dolorosos, podendo até morrer. A maioria das pessoas fica nervosa e mal-humorada ao sentir dor. Isto acontece inclusive com os animais. Daí, provavelmente foi criada a expressão: estar, ficar, acordar de ovo virado. Uma segunda interpretação para o axioma origina-se da experiência culinária. Ao fritar um ovo do tipo estrelado, a cozinheira vira-o para verificar a sua cocção e, às vezes, ele se parte. Isso causa descontentamento a quem o prepara e diante da situação em que pretendia um ovo inteirinho, fica chateado, tendo que refazer o trabalho. De acordo com certas fontes, uma terceira versão para o ditado está relacionada com a medicina. Tratase talvez daquilo que os médicos denominam torção testicular, muito dolorosa, conhecida popularmente no interior do país como ovo virado (torcido). Os urologistas poderão explicar melhor. A sabedoria popular emprega metáforas, partindo de situações rotineiras. Essa expressão está relacionada a situações indesejáveis e desagradáveis, das quais derivam aborrecimentos e mal-estar. O adágio aplica-se a muitas situações em diferentes aspectos da vida humana, notadamente nos relacionamentos funcionais. Existem pessoas com as quais é complicado lidar, sendo de difícil convivência. A elas encaixa-se bem o axioma citado. Estão sempre de mal com tudo ao seu redor, reclamando disso ou daquilo. Nada está bom ou lhes agrada. Geralmente, de semblante fechado, o sorriso não aflora em seus lábios. Tampouco se entusiasmam com o espetáculo da natureza e a beleza das crianças. Um gesto cordial de tais indivíduos é raro como chuva no deserto. Estar ao lado de alguém de constante mau humor é entediante. Mesmo diante de personagens de ovo virado, não se pode perder a alegria da vida, dom supremo de Deus. Lembremo-nos da recomendação do apóstolo Paulo aos colossenses: “Revesti-vos, de ternura, misericórdia, bondade, mansidão e paciência. Suportai-vos uns aos outros” (Cl 3, 12). Há os antipáticos funcionais. Alegam que, ao exercer a função de chefia ou coordenação, precisam estar sempre insensíveis e impermeáveis. Certos patrões, na convivência cotidiana com seus subalternos, acham que estes devem ser tratados com desprezo, não sendo merecedores de gentilezas. Equivocadamente, argumentam que devem evitar que se tornem familiarizados. Eis o conselho bíblico: “Desapareça do meio de vós todo amargor, toda ira e gritaria. Portanto, sede bondosos e compassivos” (Ef 4, 32). Em todas as partes do mundo, existem pessoas, que bastam subir um degrau social, funcional ou financeiro, mudam de personalidade, achando-se superiores. Um aforismo espanhol diz: “Si quieres saber cómo es fulanito, dále un carguito.” (Se desejas saber como é alguém realmente, dá-lhe um cargo, por menor que seja). Mostram sempre uma cara sisuda, como se tivessem engolido algo azedo ou intragável. O ser humano continua imaturo. Não consegue aceitar que a vida é efêmera e todos são iguais diante da realidade da morte. Consequentemente, deveria ser assim também diante da vida. Eis o que nos ensina Paulo, em sua Carta aos cristãos de Roma: “Que o amor fraterno vos una uns aos outros, com terna afeição, estimando-vos reciprocamente” (Rm 12, 10)

sexta-feira, 8 de março de 2024

Hoje é o Dia Internacional da Mulher. Por que? Suas sementes foram plantadas em 1908, quando 15 mil mulheres marcharam pela cidade de Nova York exigindo a redução das jornadas de trabalho, salários melhores e direito ao voto. Um ano depois, o Partido Socialista da América declarou o primeiro Dia Nacional das Mulheres. Contudo, independentemente desse fato, a mulher, ao longo da história, sempre se fez presente em vários vetores da existência - mulheres santas, mulheres guerreiras, mulheres do lar e mulheres, apenas mulheres da vida ou do mundo. Cada uma sabe a sua missão e oferta exemplos de maneira incontáveis. Toda família tem seus exemplos. Por isso falo da minha mãe - heroina na criação de sete filhos, acompanhando o meu pai pelas comarcas do interior e solidificando o futuro de cada fruto de seu desvelo. Foi múltipla, vencedora. Minhas irmãs Lêda, Elza e Socorro, cada uma com histórias duras, mas igualmente vencedoras. Minha inesquecível Therezinha, parceira durante 71 anos, deixou dois exemplos de coragem nas pessoas de Rosa Ligia e Thereza Raquel. Por tudo isso, neste dia, reverencio todas elas - espiritualmente pelas que partiram e fraternalmente para as que continuam a labuta diária, como guerreiras. PARABÉNS A TODAS AS MULHERES - ELAS MERECEM.

terça-feira, 5 de março de 2024

REVISTA GENEALÓGICA BRASILEIRA OS MIRANDA-HENRIQUES A vasta e prestigiosa família de minha mãe foi transplantada de Portugal para o Brasil no século XVIII. Fundou-a, no Nordeste, Francisco Xavier de Miranda Henriques, que, durante quase 19 anos, exerceu no Brasil os elevados postos de Capitão-Mór e Governador das Capitanias do Rio Grande do Norte (11 anos e meio), Ceará (4 anos) e Paraíba (3 anos). Era Cavalheiro professo na Ordem de Cristo. Moço Fidalgo da Casa Real, aparentado com as famílias mais ilustres do Reino. Os Mirandas–Henriques tiveram posição de excepcional relevo entre a nobreza lusitana. Desde o século XVII se entrelaçaram com a família dos Condes de Avintes. Uma neta do 1º Conde, Teresa de Borbom, filha do 2º Conde (D. Antônio de Almeida), casou em 1604, com D. Álvaro da Silveira e Albuquerque, que foi Governador do Rio de Janeiro, de 1702 a 1704, e faleceu em 1716. Entre outros filhos, tiveram Maria de Borbon, que casou com Antônio de Miranda Henriques, Senhor das Vilas de Carapito e Cadriceira, Comendador de Santo Estevão de Passos, na Ordem de Cristo e outras; foi Governador e Capitão General de Mazagão, do Conselho de Sua Majestade. Foram pais de José Joaquim de Miranda Henriques, que nasceu a 4 de dezembro de 1718, e casou com a Condessa Ana de Lima, viúva do 4º Conde da ilha – e de Manuel de Miranda Henriques, Cônego da Basílica Patriarcal, nascido a 30 de abril de 1722 (1). Sobre a origem desta família escreve o Visconde Sanches de Baena (Indice Heráldico, pág. LXXXVI): “Henriques, de Castela . Descende esta família, sem dúvida, de D. Fernando Henriques, filho natural do rei D. Henrique de Castela e de D. Brites Peres de Ângulo, que vindo para Portugal, foi neste reino tratado como filho de rei, e dele procedem os senhores das Alcáçovas, e por fêmea todos os Miranda Henriques, e muitas outras famílias; porque todos folgavam de aparentar com eles. São suas armas o escudo mantelado: os dois campos altos vermelhos, e em cada um seu castelo de ouro, o de baixo de prata com um leão vermelho.” Luís de Miranda HENRIQUES, “herdeiro da casa de seu pai”, comendador de S. Julião, Santo André de Sever, Santa Maria de Pena Águia e de Santa Eulália de Balzar, na Ordem de Cristo, casou , em 3 de dezembro de 1702, com Madalena Luíza de Borbon, irmã de D. Pedro de Mascarenhas de Carvalho, nascido em 1670, feito Conde S. Domil por D. João V, que o despachou para Vice-Rei da Índia, em 1732. Luís de Miranda Henriques foi coronel do Regimento da Armada e General de Batalha, posto em que serviu na guerra de 1704”. (D. Antônio Caetano de Souza, op. cif. vol. XI, págs, 910 e segs). O Rio de Janeiro foi governado, de 1633 a 1637, por um Miranda Henriques – Rodrigo – que foi Cabo Militar da Praça da Baía, Capitão da Companhia de Arcabuzeiros, e sucedeu a Salvador Correa de Sá e Benevides no governo de Angola, onde faleceu, em 1652. (Pizarro – Memórias Históricas do Rio de Janeiro, tomo II, PÁG. 250: Baltazar da Silva Lisboa – Anais do Rio de Janeiro, pág. 113, tomo I). Quanto às armas dos Mirandas-Henriques, assim se expressa G.L. dos Santos Ferreira (Armorial Português, Lisboa, 1925, pág. 167, I Parte); ________________________ (1)Sobre os Miranda-Henriques ler o Cap. XV do Vol. XVI da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, 1743, de D. Antônio Caitano de Souza, intitulado “De D.Branca de Eça e sua descendência”, pág.764 “765 --- Henriques (de D. Fernando Henriques). De vermelho, com um castelo de ouro, de três torres; mantelado de prata, carregado de dois leões de púrpura, o da direita voltado (2). “Timbre --- O castelo do escudo, a torre do meio encimada por um leão de púrpura, sinte. O fundador da família Miranda-Henriques no Brasil, o velho Capitão-Mór, pertencia ao ramo Sandomil, isto é, à mais alta nobreza de Portugal. No perfil do Marquês de Pombal, Camilo Castelo Branco descreve (págs.17 a 41) o torneio havido em Lisboa, em 1738, por iniciativa do Visconde de Vila Nova de Cerveira, estribeiro-mór da Princesa do Brasil , o qual “convocou trinta e dois fidalgos da primeira grandeza, para festejarem o natalício da futura rainha D. Maria Vitória, com escaramuças militares, ao estilo africano, e corrida de touros pelos fidalgos mais peritos e celebrados nessa prenda”. Os nobres constituíam quatro grupos ou fios, de oito cada um, encabeçados por um guia. O 4º grupo era assim composto: GUIA Conde S. Miguel {D. Francisco de Meneses (Ericeira) [Visconde de Vila Nova de Cerveira (Teles) CAVALEIROS {D. Álvaro José Botelho (S. Miguel) { Francisco Xavier de Miranda Henriques (Sandomil) { D. Marcos de Noronha (Arcos) { José Joaquim de Miranda Henriques CONTRA-GUIA D. Luís de Souza (Calharis) Eis a alta Hierarquia do Capitão-Mór que, no ano seguinte àquela cavalhada, assumia o governo do Rio Grande do Norte, no qual se manteria por quase doze anos, austero, decente, de uma proibidade proclamada pelos documentos da época e pelos historiadores que têm apreciado a sua administração naquela Capitania e nas do Ceará e da Paraíba. Tendo assumido o governo a 18 de dezembro de 1739, deixou-o a 30 de maio de 1751. Foi muito combatido, em virtude, única e exclusivamente, de sua irredutível integridade, que não vacilava em contrariar interesses prejudiciais à causa pública. O Senado da Câmara de Natal chegou a representar a EL-Rei contra o Governador, um pouco desprimorosamente, diga-se de passagem, porque ele já estava aguardando substituto quando ocorreu a lembrança da representação: “Temos por notícia que se acha provido Pedro de Albuquerque e Melo para Capitão-Mór desta Capitania ... Diremos a V. Majestade que os governadores por estarem a mais de três anos causa grande descômodo ao povo, porque se afeiçoam a algumas pessoas e por razão destas fazem injustiças. “ (Tavares de Lira - História do Rio Grande do Norte, pág. 325). (2) “Em Espanha trocam a ordem do mantelado, tomando por lugar principal o mantel, e por lugar secundário o campo do escudo . Assim usam, em Portugal, a casa das Alcáçovas e os Miranda-Henriques.” As armas dos Miranda-Henriques ornam o teto do Paço de Sintra. (Anselmo Braancamp Freire – Os Brasões da sala de Sntra, vols.) Sobre ele escreveu o ilustre historiador norte-rio-grandense, desembargador Antônio Soares, na “República”, de Natal, 13 de julho de 1930: Miranda Henriques era Moço Fidalgo da Casa Real e contava, ao tempo da nomeação, 18 anos, 11 meses e 29 dias de serviço no Reino de Portugal e na praça de Mazagão, a princípio como soldado de Cavalaria no regimento de que foi Coronel-Brigadeiro o Marquês de Marialva. Em 1733, ainda em Mazagão, continuou voluntariamente no serviço da praça, como soldado infante, passando depois a cavaleiro, “acobertado com armas e à sua custa” –e outra vez soldado infante, ocupou o posto de capitão da infantaria, por patente do governador da dita praça, João Jacques de Magalhães. Em todo esse tempo, “sem nenhuma nota” -- diz a Parente Real – Miranda Henriques achou-se em várias ocasiões de combates travados contra os mouros, mostrando “valor e assistindo as suas obrigações com pontualidade e obediência”. Nos dois anos seguintes, entrou em novos reencontros, portando-se com abnegação e coragem. Em 1736, constando que uma embarcação moura achava-se ancorada para dentro do cabo de Azamor, o governador de Mazagão, Bernardo Pereira de Berredo, enviou, para capturá-la, dois barcos armados em guerra, indo um deles o capitão Miranda Henriques, que agiu “com grande valor e distinção”. A diligência foi executada com êxito, conseguindo os expedicionários , na mesma noite, a rendição da nau inimiga, que, com a guarnição de 28 homens e o seu carregamento de fazendas, foi, pela manhã, conduzida para Mazagão .” Miranda Henriques, deixando o governo do Rio Grande do Norte em 1751, regressou ao Reino, segundo se presume.Em 22 de abril de 1755, assumiu o Governo do Ceará, deixando-o em 11 de janeiro de 1759. Em 20 de abril de 1761, assumiu o governo da Paraíba, que deixou a 20 de abril de 1764. Era pobre , segundo o testemunho dos contemporâneos e segundo se infere da altiva carta que endereçou ao rei, em 20 de março de 1757, queixando-se das misérias que passava, com o ridículo vencimento de Cr.$ 400,00 anuais, tendo chegado ao ponto de tomar um empréstimo de Cr.$ 4.100,00 ao cofre dos órfãos, e se não fora a intervenção de seu secretário, Caetano José Correa, figuraria o nome da autoridade mais graduada da capitania entre os daqueles que mendigaram do governo esse pequeno obséquio (Barão de Studart – Notas para a História do Ceará). Endereçou uma petição ao Capitão General de Pernambuco, requerendo uma anuidade de Cr.$ 200,00 para residência, pois no Rio Grande do Norte tinha direito à aposentadoria, e no Ceará não a tinha, embora a tivesse o ouvidor. O Capitão General concedeu-lhe o favor pleiteado. Seu ato, porém, não foi aprovado, e Miranda Henriques foi intimado a restituir aquela importância ao erário. Durante os largos anos em que exerceu aquele cargo, em três Capitanias, não logrou nenhuma melhoria nos proventos que auferia: Cr.$ 400,00 anuais. Acabou, após uma permanência tão demorada no nordeste brasileiro, se afeiçoando à região, onde se fixou definitivamente, após a sua missão governamental na Paraíba. Adquiriu ali uma propriedade, tradicionalmente conhecida por “Bolandeira”, em Areia, proveniente de um primitivo engenho de descaroçar algodão. Seu primogênito e homônimo, patriarca sertanejo, era chamado “Xavier da Bolandeira’. Toda a família saída daquela terra mater passou a ser nomeada “Bolandeira”, como um título de nobreza, revivescência de velho costume feudal que vinculava à terra o destino de seus fundadores e povoadores. A família Miranda Henriques, no Nordeste, procede deste venerando Capitão-Môr, que faleceu em avançada idade, na Paraíba. Espalhou-se pelo Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco, e seus descendentes conservam aquelas virtudes esplêndidas que eram atributo do digno genearca. É uma grei imensa de fazendeiros, comerciantes, doutores, políticos, sacerdotes. Em Pernambuco nasceu Antônio Henriques de Miranda, e, na Paraíba, Manuel Lobo de Miranda Henriques, filhos de João José de Miranda Henriques, o segundo dos quais foi revolucionário em 1817, tendo permanecido preso nas Cadeias da Relação da Baía: Presidente das Províncias de Alagoas (1831) e Rio Grande do Norte (1833): deputado geral, eleito a e reconhecido, à Câmara nati-morta de 1842. Foi o pai de Aristides Lobo, que era, assim, um legítimo Miranda Henriques, nascido na Paraíba. Membro eminente desta família foi o Arcebispo D. Adauto Miranda Henriques, lustre do episcopado brasileiro, falecido em 1935. Era primo e amigo do meu avô materno, Augêncio Virgílio de Miranda Henriques. Em sua homenagem é que recebi, na pia batismal, o nome que eu tenho. Em uma de suas visitas pastorais pelo interior do Rio Grande do Norte, àquele tempo sob a jurisdição episcopal da Paraíba, fui por ele crismado, em Mossoró, onde residiam meus pais e avós. De S. Excia. Revma. recebi preciosas informações sobre as origens da família no Nordeste. Cartas infelizmente extraviadas quando transferi minha residência para o Rio de Janeiro. Da correspondência com que honrou, resta apenas um cartão, em que resolvia uma dúvida genealógica, assim redigido: “Exmo. Am.º e parente Dr. Adauto da Câmara. Afetuosas saudações. A causa da demora de minha resposta à sua prezada carta foi a pesquisa que fazer, sem nenhum resultado, infelizmente. Apenas fiquei certo do que supunha o Exmo. Sr. Dr. Soares (3), isto é, o chamado Capitão-Môr do engenho Bolandeira, na freguesia da Cidade de Areia, era o filho mais velho do Capitão-Môr que deixou o Governo desse Estado em 1751. Certamente esse título de Capitão-Môr seria de herança. Com os meus afetuosos cumprimentos, faço os mais sinceros votos de felicidade verdadeira ao nosso bom Deus. D. Adauto A. de Miranda Henriques. Paraíba, 12-VIII-1930.” Meu bisavô materno, Antero Frederico Borges de Miranda Henriques, era neto do Capitão-Môr e Governador Francisco Xavier de Miranda Henriques, entroncado, assim, na melhor gente lusitana. Faleceu quase centenário, em Parelhas, Rio Grande do Norte, aos 23 de abril de 1915, deixando uma descendência bíblica: 18 filhos, 110 netos, 119 bisnetos, segundo registrou “A República”, de Natal, noticiando o seu passamento. ________________________ (3)Desembargador Antônio Soares, escritor e linhagista, antigo Presidente da Corte de Apelação e da Academia de letras do Rio Grande do Norte. __________________________________________________ INSTITUTO GENEALÓGICO DO RIO GRANDE DO NORTE
Por Nélio Silveira Dias Júnior, “Felinto Lúcio: um músico excepcional, um orgulho potiguar Felinto é uma figura que nos enche de orgulho, lembrando-nos de que, se a luz está disponível para todos, o brilho é fruto de dedicação e esforço de cada um. Desde criança, Felinto Lúcio Dantas aprendeu com os pais os segredos da agricultura, e desenvolveu um profundo amor pela terra, acreditando que, cuidando dela, também estaria tratando de si mesmo. A terra lhe deu tudo: alimentação e ensinamentos e, nela, trabalhou até seus últimos dias. Nasceu em família numerosa, em Carnaúba dos Dantas/RN, em 1898, fazendo ali a sua morada, e do sertão, a inspiração. Além da terra, a sua paixão era a música. Sua vocação musical despertou ao assistir, com a banda filarmônica de Acari/RN, aos ensaios das músicas de seu primo Tonheca Dantas (1871-1940), compositor, dentre grande produção musical, da valsa Royal Cinema, entusiasticamente aplaudida no Brasil e no Exterior. Felinto começou, como relatou em entrevista, “como todo mundo, tocando um instrumento, depois dirigindo banda e, consequentemente, regendo-a, até chegar a composição”, mas, segundo ele, “nunca fiz nada que prestasse dentro dessa coisa toda”. Simplicidade à parte, Felinto foi grande em toda a música que fez, reconhecido no Seridó, no Rio Grande do Norte, no Brasil e no mundo. Um gênio mesmo. Com dinheiro suado da pequena agropecuária, Felinto pagou aulas com Pedro Arboés, professor de música da região. Aprimorado o seu talento, não tardou para trilhar o caminho da composição. A primeira composição fez aos 17 anos, o dobrado "Estreia"; a última, aos 88 anos, a valsa "Delzira Maria Dantas", homenagem a sua segunda esposa. Nesses 71 anos dedicados à música, construiu uma obra surpreendente, composta por 83 dobrados, 42 valsas, 36 obras sacras, 12 marchas, 9 hinos, 4 mazurcas, 4 choros. A música sacra de Felinto Lúcia era diferenciada. Compôs hinos, missas e novenas, destacando-se inúmeras partes dessas obras da liturgia católica, tais como: "Pai-Nosso", "Ave-Maria" “Gloria”, “Credo”, “Agnus Dei”, “O Salutaris Hostia”, “Kyrie”. São composições que iluminam corações e fortalecem a aproximação com o divino: melodias envolventes, em músicas que transmitem fé e suscitam adoração. Suas músicas deixaram o sertão do Seridó para ganhar notoriedade nos grandes centros do Brasil, como Rio de Janeiro, e mesmo da Europa. Sua música "Quinta Novena" foi executada na missa celebrada pelo Papa São João Paulo II, em 1997, na Catedral do Rio de Janeiro. Recentemente, no dia de Corpus Christi de 2021, foi cantado no Vaticano um Tantun Ergo, de Felinto Lúcio, tradicional hino eucarístico sobre a letra de São Tomás de Aquino, de 1264. Um seu “O Salutaris Hostia” também foi ouvido há pouco tempo no altar da Cátedra da Basílica de São Pedro, por ocasião da novena do Apóstolo. Esse Tantum Ergo Felinto Lúcio compôs “em 1957 em latim, para duas vozes. Comumente as suas obras sacras eram escritas para que duas de suas filhas cantassem durante a missa. Sua introdução foi inspirada no canto do pássaro Anu-branco" (periodicos.unespar.edu.br - O plantador de sons). No sertão do Seridó, a beleza verdejante da natureza se une à transcendência da música sacra de Felinto Lúcio Dantas, criando um cenário de encanto e devoção. Outro tipo de música ao qual Felinto se dedicou foram as valsas. Compôs várias delas, como, por exemplo, "Culpa e Perdão", "Adélia", "Lúcia Dantas", “Ana Dantas”, "Teresa Maia". Em 1978, por iniciativa do MOBRAL, lançou em um LP duplo algumas de suas obras, contando com a participação de grandes músicos do cenário nacional, sob a coordenação do maestro Radamés Gnattali, grande artífice da aproximação da música erudita e popular no Brasil. Em Natal, o lançamento desse álbum ocorreu no Palácio do Governo, em cerimônia solene, patrocinada pelo então Governador Tarcísio Maia, seu admirador. Com esse evento, o compositor se tornou mais conhecido em todo Estado e no País. Como lembra o poeta e ex-professor universitário Francisco de Sales Felipe, a quem Felinto Lúcio dedicou, em 1978, a marchinha Sales, suas músicas exalam espiritualidade e emoção, tocando profundamente a alma de quem as ouve. “É um Deus da música!” Para atender ao público da região, Felinto compôs também muitos dobrados para as bandas locais, peças que se ouvem frequentemente ainda hoje, geralmente em solenidades, às vezes desconhecendo os ouvintes e mesmo os músicos quem é o admirável compositor. Dentre tantos, citam-se "Mobral 59", "Caetano Dantas 58", "Paulo Lúcio Dantas 55", "Flávio Lúcio Dantas 57". A sua inspiração era a terra. Não compunha no luxo de vivendas ou gabinetes, mas, em sua maioria, trabalhando nas suas lavouras, a sol a pique, fazendo, muitas vezes, do cabo de sua enxada o seu lápis, rabiscando as notas musicais na areia do Rio Carnaúba. Só depois passava para o papel, pois a natureza era sua escola, como costumava dizer. Felinto Lúcio buscava preservar as tradições musicais do sertão, mantendo vivas as raízes e os valores culturais da região. Compunha para aquela realidade cultural, para o coro da igreja, as bandas locais. O hino da cidade de Carnaúba dos Dantas é de sua autoria, e é a prova disso. A Banda Filarmônica de Acari/RN, da qual passou a ser regente em 1920, atualmente tem seu nome. No largo em frente da sede da banda, está estátua sua, obra do artista Guaraci Gabriel, e iniciativa da Prefeitura Municipal, na qual Felinto exerceu o cargo de secretário de 1944/1968, com relevantes serviços prestados. O Governo do Estado do Rio Grande do Norte ofereceu a Felinto Lúcio, em 1986, medalha da ordem do mérito no maior grau, tendo-lhe prestado homenagens a UFRN e o IFRN. Felinto Lúcio faleceu em 1986, deixando saudade aos amantes da melhor música. Teve 30 filhos, sendo 14 com a primeira esposa, Antônia Jacinta de Medeiros, e 16 com a segunda, Delzira Medeiros Dantas. Todos homenageados em sua obra. Felinto Lúcio Dantas, "um plantador de sons". Seu talento e paixão pela música são evidentes em cada nota, levando os ouvintes a uma experiência transcendental. E, ao compartilhar sua música sacra, espalhou luz e inspiração por todo o Rio Grande do Norte, conectando as pessoas com o sagrado, e confirmando sua espiritualidade. Fontes: Fundação José Augusto (Adecon) Revista do Galo, n. 5, p. 31–42, 1 maio 2022 Canal do YouTube- Presto Música de Victor Dantas Tribunal do Norte, 4/6/2021 Francisco de Sales Felipe (Em conversas de alpendre) TVU – Memória Viva – Felinto Lúcio - 1982”
A misericórdia, virtude quaresmal Padre João Medeiros Filho A misericórdia é uma das faces da caridade e compaixão. O termo deriva do latim e significa etimologicamente ter o coração (“cor”) voltado para os pobres (“miseri”), estar em comunhão com eles. Entretanto, não se deve entender o significado da palavra pobre na dimensão socioeconômica, mas na semântica bíblica. Na Sagrada Escritura o étimo tem um sentido amplo. Lembra o carente, quem sofre física ou espiritualmente etc. Assim deve-se ler o texto do evangelista Mateus. Os despojados dos bens efêmeros alcançarão a felicidade, na medida em que serão saciados de Deus e suas graças. Assim como a pobreza, a misericórdia integra as bem-aventuranças do Evangelho. “Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o reino dos céus; bem-aventurados os misericordiosos, pois eles alcançarão a misericórdia” (Mt 5, 3; 7). O misericordioso se compadece dos que têm carência no corpo ou na alma. Isto abrange a empatia com os que têm a vida árdua. A palavra inclui a atitude de quem consegue sair de seu egoísmo em busca dos outros, notadamente dos afligidos por todos os tipos de miséria material ou espiritual. Nas diferentes religiões, há convergências em relação ao significado do vocábulo misericórdia, incluindo o respeito pelos outros e a reverência pela vida. A teologia entende essa virtude, não apenas quando se volta para o próximo, de forma emocional, mas também, de modo eficaz, na medida em que se tenta superar a limitação e o padecer. Desde os primórdios do cristianismo, os fiéis praticam esse gesto de solidariedade com os sofridos, desvalidos, esquecidos, não só no plano espiritual, mas também corporal. Segundo os Atos dos Apóstolos, as primeiras comunidades cristãs consolidaram o cuidado com os órfãos, viúvas e doentes, expressando a caridade eclesial por meio dos diáconos, agentes da ternura da Igreja primitva (cf. At 6, 1-6). O momento é oportuno para repensar a função do diácono, realçando seu papel de ministro da ação misericordiosa, e não apenas como mero coadjuvante na liturgia. A misericórdia foi sendo introduzida na cultura ocidental, tornando-se um dos pilares da humanidade. Hoje, esta prática evangélica tomou formas secularizadas, algumas sistematizadas em programas sociais de governos. No entanto, várias têm se mostrado ineficientes. A Igreja continua expressando a sua face caritativa aos mais fracos, inspirada nos ensinamentos de Cristo. No nascedouro do cristianismo no Brasil, é marcante a postura de caridade evangélica realizada pelos jesuítas nas Santas Casas de Misericórdia, precursoras das instituições hospitalares e dos órgãos de previdência social. No Nordeste, destaca-se a obra de Padre Ibiapina com as Casas de Caridade. Dignos de reverência são os inúmeros orfanatos, creches, ambulatórios e escolas, criados e mantidos por congregações religiosas e paróquias. Na Bula “Misericordiae Vultus”, o Papa Francisco afirmou: “Tal dinamismo é uma das vigas que sustentam a vida da Igreja.” Assim expressara Santo Irineu: “Um dos sacramentos mais expressivos do Divino.” A credibilidade eclesial passa por esse caminho. Este não é um sentimento espiritual vago, teórico e abstrato, mas uma atividade responsável, abrangendo o amor de Deus por nós. O apelo misericordioso deriva da deficiência de um direito humano, inerente à própria criação. Tal carência necessita ser preenchida. É um clamor que convoca os cristãos a dar uma resposta efetiva e real, que tem seu fundamento na Palavra de Deus. Nosso julgamento final far-se-á a partir dos atos de misericórdia (cf. Mt 25, 35-46). Assim entendeu o Padre João Maria, “o santo de Natal”. Trata-se de conversão, não a uma ideia, mas à concretude do amor de Cristo. E isto é uma prática quaresmal. A Igreja deve ser ícone, imagem do Deus que revela seu afeto por nós. O amor do Pai celeste é pleno de ternura, clemência e tolerância. Sua benevolência se apieda de nós. É a dinâmica do afeto divino, que vem ao encontro do ser humano em suas necessidades, seja ele ou não pecador, tenha ou não fé no Deus que se solidariza com seu sofrimento. A graça de Cristo possibilita a nossa conversão e abertura ao próximo. É importante lembrar a recomendação do Mestre: “Sejam misericordiosos como o vosso Pai” (Lc 6, 36).

sábado, 2 de março de 2024

Jair Eloi de Souza 8 h · ASSIM ESCREVI SOBRE VELHOS ENGENHOS NO MEU SERIDÓ. Na idade meã do Século XIX, seguindo o exemplo dos paraibanos e cearenses, instalados e na sua plenitude, funcionavam os engenhos de banguê nas terras confins do Seridó. O estalar da quebradeira da cana de açúcar prenunciava o fabrico da rapadura de banco. Por esses tempos, a mão de obra era suprida das tendas cativas. As colônias latinas viviam a agudez do tráfico dos afro-descendentes, vindos das terras d’além mar, sitas na mama África. É bem provável que o cultivar da cana no Seridó, no contexto das terras massapesadas de baixio e nos brejinhos de revências de açudes, tenha sido influenciado pelos cearenses, pois estes, ocupavam com esta cultura o sopé da Serra do Araripe, no sul do Ceará, já que, na chã, havia o cultivo da mandioca para a farinhada e do próprio café. De outra feita, a aquisição de rapadura e da farinha no Cariri, embora ambas fossem de excelente qualidade, demandava custos altos, ante a longa viagem no coice da burrarada. E, ainda, riscos para os velhos matutos comboieiros dos Sertões do Seridó, face a presença de salteadores a partir do vale do Rio do Peixe e, principalmente, nas cercanias do entroncamento de todas aquelas cidades da vizinhança do Crato, como Barbalha, Missão Velha, Jardim e o próprio Juazeiro. Este, em razão das pregações do Padre Cícero, transformou-se numa urbe não só frequentada por fanáticos, mas, também, por cangaceiros, jagunços, gente de boa e má índole, que se albergavam nos feudos dos Coronéis, cuja truculência não guardava distância dos baianos e alagoanos do último quartel do Século XIX e das primeiras décadas do Século XX. Nos Sertões do Seridó, o fabrico da “rapadura de banco”, tinha destinação para o consumo da própria região. Aliás, o doce, que era utilizado para todas as serventias, era mesmo com exclusividade a rapadura, principalmente nos feudos rurais. Coadjuvante no torramento do café, na confecção de doces e bolos. Não é exagero se afirmar que a rapadura era o alimento mais presente em todas as formas e horas de refeição do sertanejo. No bisaco do caçador, no badaneco do vaqueiro, no saco de boca amarrada do enxadeiro, na carona do viajante e comboieiros, no bornal do cangaceiro, nos alforjes dos rastejadores ou matadores de onça no sertão antigo, sempre havia um naco de rapadura e uma porção de farinha para refeição rápida. No Município de Jardim de Piranhas e adjacências, conheci, ainda infante, alguns engenhos de moagens de cana: No Braz, o de Quinca Salvino; na fazenda Três Riachos, o do velho Manoel Ambrósio de Queiroz; nos Pocinhos, o de Vigolvino; no Góis, o do velho Cição; e, ainda, na Saudade, o engenho de Manoelzinho Cafunbó, este último já no Município de Timbaúba dos Batistas, e mais alguns que ouvia falar e, lamentavelmente, não cheguei a visitá-los. Antes da floração das craibeiras amarelas, na primavera setembrina, as velhas moendas começavam a produzir a garapa, que se destinava aos grandes tachos e gamelas, no fabrico da rapadura e de batidas temperadas. O engenho primitivo ou de banguê era movido a boi, um trabalho que começava no “quebrar da barra”. A estação das moagens tinha grande simbologia para o sertanejo. Era um trabalho coletivo, com funções especificadas, o permeio da garapa de tacho em tacho, finalizando na gamela. Todos tinham um conhecimento pragmático do momento em que a calda deveria passar para o tacho seguinte. No entanto, a última palavra era do mestre-da-rapadura, uma similaridade do mestre-de-açucar nas usinas de refino. As velhas moendas do meu Sertão foram aposentadas. Não se ouve mais o estalo do chicote no açoite da boiada: um avanço. Porém, de consequência, não se encontra mais a qualidade nas rapaduras ainda produzidas. Nas feiras livres, é comum se verificar o selo de terras pernambucanas, produto com teor significativo de açúcar refinado. A produção do Cariri perdera em qualidade. A brejeira de garajal está mais preta e salobra. O homem destruiu a nobreza das terras massapesadas e de baixio em revência. Que pena! Meu Sertão não era assim. J.E.S.

sexta-feira, 1 de março de 2024

ENCONTRO COM A POESIA: TRÊS JOIAS DO ROMANTISMO Horácio Paiva * Neste intervalo contemplativo, sob o domínio da emoção romântica, estampo três caros poemas, lidos e relidos no tempo que me coube: O INFINITO, do italiano Leopardi; TRISTEZA, do francês Musset; e ODE SOBRE UMA URNA GREGA, do inglês Keats. Os seus tradutores são, pela ordem: Vinicius de Moraes, Guilherme de Almeida e Augusto de Campos. No final, introduzo uma nota sobre o genial poeta romeno Eminesco, acompanhada de uma de suas poesias, um soneto traduzido por Nelson Vainer. Há uma segunda nota em que apresento a tradução d’O INFINITO feita por Ivo Barroso. Muito boa também. Mas dei preferência à de Vinicius por amá-la há muito tempo e sabê-la de cor. Vejamos então: GIACOMO LEOPARDI (1798-1837) O INFINITO Sempre cara me foi esta colina Erma, e esta sebe, que de tanta parte Do último horizonte o olhar exclui. Mas sentado a mirar, intermináveis Espaços além dela, e sobre-humanos Silêncios, e uma calma profundíssima Eu crio em pensamentos, onde por pouco Não treme o coração. E como o vento Ouço fremir entre essas folhas, eu O infinito silêncio àquela voz Vou comparando; e vem-me a eternidade E as mortas estações, e esta, presente E viva, e o seu ruído. Em meio a essa Imensidão meu pensamento imerge E é doce o naufragar-me nesse mar. ALFRED DE MUSSET (1810-1857) TRISTEZA Eu perdi minha vida, e o alento E os amigos, e a intrepidez, E até mesmo aquela altivez Que me fez crer no meu talento. Vi na Verdade, certa vez, A amiga do meu pensamento; Mas, ao senti-la, num momento O seu encanto se desfez. Entretanto, ela é eterna, e aqueles Que a desprezaram - pobres deles! - Ignoraram tudo talvez. Por ela Deus se manifesta. O único bem que ainda me resta É ter chorado uma ou outra vez. JOHN KEATS (1795-1821) ODE SOBRE UMA URNA GREGA I Inviolada noiva de quietude e paz, Filha do tempo lento e da muda harmonia, Silvestre historiadora que em silêncio dás Uma lição floral mais doce que a poesia: Que lenda flor-franjada envolve tua imagem De homens ou divindades, para sempre errantes, Na Arcádia a percorrer o vale extenso e ermo? Que deuses ou mortais? Que virgens vacilantes? Que louca fuga? Que perseguição sem termo? Que flautas ou tambores? Que êxtase selvagem? II A música seduz. Mas ainda é mais cara Se não se ouve. Dai-nos, flautas, vosso tom; Não para o ouvido. Dai-nos a canção mais rara, O supremo saber da música sem som: Jovem cantor, não há como parar a dança, A flor não murcha, a árvore não se desnuda; Amante afoito, e o teu beijo não alcança A amada meta, não sou eu quem te lamente: Se não chegas ao fim, ela também não muda, É sempre jovem e a amarás eternamente. III Ah! folhagem feliz que nunca perde a cor Das folhas e não teme a fuga da estação; Ah! feliz melodista, pródigo cantor Capaz de renovar para sempre a canção; Ah! amor feliz! Mais que feliz! Feliz amante! Para sempre a querer fruir, em pleno hausto, Para sempre a estuar de vida palpitante, Acima da paixão humana e sua lida Que deixa o coração desconsolado e exausto, A fronte incendiada e a língua ressequida. IV Quem são esses chegando para o sacrifício? Para que verde altar o sacerdote impele A rês a caminhar para o solene ofício, De grinaldas vestida a cetinosa pele? Que aldeia à beira-mar ou junto da nascente Ou no alto da colina foi despovoar Nesta manhã de sol a piedosa gente? Ah, pobre aldeia, só silêncio agora existe Em tuas ruas, e ninguém virá contar Por que razão estás abandonada e triste. V Ática forma! Altivo porte! em tua trama Homens de mármore e mulheres emolduras Com galhos de floresta e palmilhada grama: Tu, forma silenciosa, a mente nos torturas Tal como a eternidade: Fria Pastoral! Quando a idade apagar toda a atual grandeza, Tu ficarás, em meio às dores dos demais, Amiga, a redizer o dístico imortal: “A beleza é a verdade, a verdade a beleza” - É tudo o que há para saber, e nada mais. NOTAS: (1) Dentre tais expoentes europeus - e outros de igual magnitude - uma estrela brilha na Romênia e seu brilho aquece o ocidente, embora pouco notado entre nós: MIHAIL EMINESCO, aquele que disse o seu epitáfio nesses versos: “Tenho ainda um desejo: Na tarde silente Me permitais morrer Na beira do mar.” Conheço-o graças à ANTOLOGIA DA POESIA ROMENA, traduzida e organizada por Nelson Vainer, editada em 1966 (pela Editora Civilização Brasileira), e que tenho a subida honra de possuir desde então, como presente do hermano Hermano. Dele faz rasgados elogios Giuseppe Ungaretti: “Raramente se encontra na literatura dos últimos dois séculos uma figura de escritor e poeta mais complexa e mais completa que a de Mihail Eminesco.” “(...) poeta de sentimento torturado e ardente até à conquista do mais alto esplendor, que faz dele um dos maiores poetas do seu tempo e de todos os tempos, através da humanidade, Eminesco permanece para sempre um dos mestres da palavra poética profundamente inspirado.” Bernard Shaw, em carta dirigida à escritora Sylvia Pankhurst que, em 1930, publicara, em Londres - e pela primeira vez em inglês -, uma coletânea de poemas de Eminesco, situa o poeta entre os maiores poetas românticos do século XIX. O meu amigo e poeta, o norte-rio-grandense Jarbas Martins, que acolhe e coleciona sonetos, certamente gostará deste, romântico. Não é a obra-prima de Eminesco, geralmente assim considerado o seu poema LÚCIFER (Estrela da Manhã), um longo de 46 quadras, ou seja, 184 versos. Mas o soneto escolhido é belo e traz, bem talhada, a medida do romantismo: SONETO Quando a própria voz dos pensamentos se cala, e em mim ressoa um canto doce e piedoso então, te invoco; ouvirás o meu apelo? Das brumas frias em que nadas, irás libertar-te? Irão iluminar a noite profunda os teus olhos grandes, portadores de paz? Ressurges da sombra dos tempos idos, Para ver-te voltar - como em sonho, assim, viva! Desces devagar... perto, mais perto, aconchegas-te novamente sorrindo à minha face, oh, teu amor com um suspiro mostra-o, com tuas pestanas tocas as minhas pálpebras, que eu sinta a vibração do teu abraço perdida para sempre, eterna adorada. (2) E, novamente, O INFINITO de Leopardi, agora na tradução de Ivo Barroso: O INFINITO Sempre cara me foi esta colina Erma e esta sebe, que de extensa parte Dos confins do horizonte o olhar me oculta. Mas, se me sento a olhar, intermináveis Espaços para além, e sobre-humanos Silêncios e quietudes profundíssimas, Na mente vou sonhando, de tal forma Que quase o coração me aflige. E, ouvindo O vento sussurrar por entre as plantas, O silêncio infinito à sua voz Comparo: é quando me visita o eterno E as estações já mortas e a presente E viva com seus cantos. Assim, nessa Imensidão se afoga o pensamento: E doce é naufragar-me nesses mares. ................................................................................................................................ (*) Horácio de Paiva Oliveira - Poeta, escritor, advogado, membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN, da União Brasileira de Escritores do RN e presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA.
VIROU ARAPUCA Valério Mesquita* Mesquita.valerio@gmail.com Mais do que o Imposto de Renda, o IPTU, a dengue, a chikungunya, o Covid, o furor das multas de trânsito é a nova virose que enerva o natalense. O Código Nacional de Trânsito está se tornando uma arma nas mãos dos guardas despreparados, muito mais perigosamente do que o próprio veículo na direção dos motoristas imprudentes. Como o trânsito é uma matéria altamente disciplinadora, um código que vem para punir os seus contraventores deve, de partida, merecer um inicial trabalho pedagógico de orientação e não, ser aplicado doidivanamente por agentes mal humorados. O Código de Trânsito, que é uma das melhores coisas que aconteceu nesse país de contravenções, está se transformando num abuso porque aplicar a lei já é difícil para juízes e desembargadores, avalie para um guarda de trânsito, desqualificados, com uma caneta à mão e o sentimento do mundo. Outro dia, eu descia a Hermes da Fonsêca no sol quente do meio dia e contemplei uma cena insólita no canteiro central da avenida, em frente a Escola Doméstica. Óculos no meio do nariz, como de costume, um jornalista e amigo manuseava as tórridas páginas do código para explicar ao guarda impassível e doutorável, as contradições da lex talionis. Comigo aconteceu na Prudente de Morais, sentido norte/sul. Antes do sinal luminoso da rótula do Arena das Dunas parei o automóvel quando o velho semáforo amarelou. Senti-me obediente e disciplinado. Pelo retrovisor, atrás de mim, flagrei um guarda rabiscando à bordo de uma moto verde-amarela. Procurei, assustado, a infração. Dois centímetros dos pneus dianteiros sombrearam a faixa branca do pedestre. Pensei protestar mais adiante. Lembrei-me da tolerância cristã. Recordei os arroubos parlamentares de Nélter Queiroz certa vez e desisti da contestação olímpica e retilínea. Às vezes, eu reflito que existe, uma deliberada intenção de transformar a STTU em empresa de economia mista. Com o volume de recursos provenientes das multas desvairadas, dificilmente nenhum outro órgão estatal suplantaria a sua receita. Não se trata de oposição ao sistema de trânsito. Mas, de uma postura cética ante uma avalanche de multas sem um critério orientacional que eduque o contraventor sem revoltá-lo. Sem que ele veja no manual um instrumento discricionário, antidemocrático e ditatorial. As infrações mínimas de trânsito estão sendo punidas de uma forma geométrica, caótica e até irracional. A situação é preocupante. O cidadão comum está sendo confundido com os contumazes irresponsáveis do trânsito. A multa virou rotina. O natalense, já pensa vender o seu carro, porque a multa ingressou no seu orçamento mensal assim como as taxas de luz, água, telefone, IPTU, cartão de crédito, supermercado, etc., além da ferocidade anual do leão do Imposto de Renda. Dirigir hoje em dia, além de ser perigoso para a vida também o é para o bolso. Tudo depende de uma acelerada ou de um freio brusco, no lusco-fusco, dos bruxos à espreita, de lápis e papel à mão. (*) Escritor

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

OLAVO LACERDA MONTENEGRO, O MÚLTIPLO DESBRAVADOR  
A pessoa é para o que nasce. O dito cabe à perfeição na trajetória de vida do agropecuarista, empreendedor e político potiguar, Olavo Lacerda Montenegro. Nascido na cidade de Macau (RN), a 25 de dezembro de 1920, filho do pecuarista e salineiro, Manoel Pessoa Montenegro (Manezinho), também natural de Macau, e de Maria Lacerda Montenegro, a qual empresta o nome a uma das principais avenidas de Nova Parnamirim (avenida Maria Lacerda Montenegro), localizada na zona Sul de Natal.   Olavo foi o varão da família. Nasceu, a bem dizer, em berço de ouro. A infância foi na fazenda do pai, onde aprendeu as primeiras letras, vez que existia na propriedade um grupo escolar. Os estudos avançaram no Colégio Diocesano de Mossoró, onde tomou lições, inclusive de vida, por três anos. De Mossoró, veio para Natal estudar no Colégio Marista. Concluídos os estudos na capital, o jovem Olavo parte para o Recife com o intuito de cursar agronomia. Na Veneza brasileira, decepcionou-se com a faculdade que queria ensinar a ele o que já sabia na vida rural. Durante um São João, no Assú, comunica ao pai que não voltará mais para o Recife. Resolve fixar residência no Vale e assumir as duas fazendas doadas por Manezinho no nascimento.   Mas o destino quis que o adolescente fosse convocado para a Segunda Guerra. Retorna para a capital para servir na Base Aérea de Natal. Na torre de comando da Base, assistia toda manhã os aviões decolarem para Dakar, no Senegal, e da África para a Europa, com o escopo de combater o nazifascismo. No período da tarde, o pracinha presenciava a chegada das aeronaves vindas de Miami, via Belém do Pará, onde abasteciam para prosseguir voo até Natal. Eram cerca de dois mil aviões diariamente na Base, entre chegadas e partidas. O certo é que Olavo não precisou voar para combater o Eixo do Mal. Nos dias de folga da caserna, costumava flanar pela Ribeira, com os amigos do Assu, pilotando um automóvel conversível presenteado por dona Maria Lacerda. Gostava de frequentar a Rampa, o cais da avenida Tavares de Lira e a Confeitaria Vesúvio.   Em um sábado na Base, quando se preparava para partir para a Ribeira, o oficial do dia cortou suas asas e escalou Olavo para lavar os banheiros, mesmo de folga. O episódio mudou a vida do jovem, porque após cumprir com a obrigação, deu carona a uma pessoa em Ponte Velha, e no domingo conheceu a fazenda Boa Esperança, que elegeria como a sua Pasárgada. A propriedade abrangia mil hectares na região que hoje é conhecida por Nova Parnamirim. A partir daí ele idealizou o crescimento da cidade de Natal, no rumo sul. Relata o seu filho, o agropecuarista, advogado e ex-deputado estadual e federal, Manoel Montenegro Neto, o Manuca, que o pai comprou terras da BR-101, entre o Atacadão e a Cidade Satélite, até o rio Potengi.   Não satisfeito, adquiriu também terras, onde hoje está instalado o Carrefour, até a concessionária Natal Veículos. Visionário, convenceu o pai a comprar o Pium, incluindo a praia de Cotovelo, em uma área de 3,5 mil hectares. De posse da fazenda Boa Esperança, Olavo arregaçou as mangas e começou a plantar milho, mandioca, banana e coco verde, entre outras culturas. Um episódio que poucos sabem e muitos desconhecem é que o rio Pitimbu não existia. Foi Olavo quem criou o Pitimbu a enxadadas. Contratou uma equipe de técnicos e de trabalhadores para dar vida ao rio. Ainda na Boa Esperança, abriu uma vacaria com cerca de 400 cabeças de vaca. Tirava mil litros de leite por dia. Para a época, como também para os dias de hoje, um feito.   Com o seu espírito desbravador e empreendedor, foi de Olavo Montenegro o planejamento da avenida Maria Lacerda, em homenagem à mãe, além das avenidas Ayrton Senna e Abel Cabral, no extremo Sul de Natal. Ainda em vida, assistiu ao surgimento da rodovia estadual Olavo Lacerda Montenegro, que liga Nova Parnamirim a locais movimentados como a Coophab, Parque das Árvores, Liberdade, Parque das Nações e Cajupiranga. Para regozijo da família, Nova Parnamirim tem hoje 93 mil habitantes e a maior renda per capita de Natal, desbancando, por exemplo, os bairros de Tirol e Petrópolis, além de ter um papel decisivo no crescimento do vizinho município de Parnamirim. O político  Muito da paixão de Olavo Montenegro pela política deve ser tributada ao pai Manoel Montenegro. Quando assumiu pela primeira vez a Prefeitura do Assu em 1930, Manezinho se mudou da fazenda para a cidade para exercer sucessivos mandatos de chefe do executivo municipal por 13 anos. Importante ressaltar que Manoel Montenegro foi prefeito antes da Intentona Comunista de 1935, levante surgido para derrubar o governo do então presidente Getúlio Vargas; também no período do Estado Novo, e foi, ainda, eleito depois da ditadura de Vargas. Seu sucessor Edgar Montenegro foi eleito prefeito por Pedro Amorim para comandar os destinos do Assú. Manezinho se formou em Farmácia, no Rio de Janeiro, com dois irmãos que se formaram em Medicina. Eram amigos de Miguel Couto e montaram a primeira clínica médica em Copacabana.  Líder inconteste da região do Vale do Assu, atestam os íntimos que Olavo Montenegro foi um político correto, honesto, sincero e leal aos seus correligionários e eleitores. Talhado para a política, exerceu o mandato de deputado estadual em cinco legislaturas consecutivas: 1958, 1962, 1966, 1970 e 1974, sendo eleito nas primeiras legislaturas pelo Partido Social Democrata (PSD). O visionário Olavo Montenegro disputou, ainda, em 1982, o mandato de senador da República, pelo antigo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), sem obter êxito.   Quem o conheceu o cita como um orador primoroso. Reconhecidamente um político combativo (ele foi um dos responsáveis pela formação da Cruzada da Esperança que levou Aluizio Alves ao Governo do Rio Grande do Norte, em 1960), defendia especialmente os interesses do Vale do Assu, importante região da terra potiguar, que amava obstinadamente.  Montenegro foi também sócio-fundador da Associação Norte-Riograndense de Criadores (Anorc) chegando a ser presidente daquela instituição, contribuindo consequentemente para a agropecuária do Estado, bem como um dos sócios-fundadores da Rádio Princesa do Vale, uma instituição do seu Assu.   Um fato político importante que marcou a carreira de Olavo Montenegro foi a emancipação política de Carnaubais. O parlamentar foi o autor da Lei nº 2.927, aprovada pela Assembleia Legislativa e sancionada pelo governador Aluizio Alves, que emancipou Carnaubais política e administrativamente. Corriam as eleições municipais de 1963. Carnaubais pertencia a Assú. Olavo apoiava para o executivo assuense Maria Olímpia Neves de Oliveira (Maroquinha). Abertas as urnas, Maria Olímpia vence a disputa. Mas não demorou muito para o rompimento político entre os correligionários. Olavo entendia que a emancipação de Carnaubais seria melhor para o Assu, porém Maroquinha percebia o contrário, uma vez que a prefeita eleita não queria perder a receita gerada pela extração do sal pela firma Matarazzo nas salinas de Logradouro, hoje distrito de Porto do Mangue. Sacramentado o rompimento, Olavo usou o prestígio que tinha junto a Aluizio Alves e encaminhou o projeto de lei à Assembleia Legislativa a fim de emancipar Carnaubais.O projeto foi aprovado no dia 18 de setembro de 1963, marcando uma nova etapa na história carnaubaense.  O cidadão  Quem conviveu com Olavo Montenegro assegura que era um homem dedicado à família e aos amigos, sempre com gestos largos de solidariedade. Servir aos pares era um predicado. Inclua-se aí a assistência ao trabalhador da pecuária e da agricultura. Cidadão de hábitos simples, tratava a todos com cortesia. Conta o filho Fernando Montenegro que o pai não tinha vícios. Não bebia e não fumava. As paixões eram três: pecuária (vaca de leite), política e o Vale do Assu.   Olavo tinha o hábito de ler jornais, especialmente o noticiário político. Era adepto da culinária sertaneja. Apreciava leite, inhame, macaxeira, sopa e outros acepipes. Casou em 1947, com dona Neide Galiza Montenegro, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, antiga Catedral Metropolitana. Celebrou o casamento o então bispo de Natal, Dom Eugênio Sales. Do matrimônio, nasceram as filhas Iolanda Galiza Montenegro e Mary Montenegro Erthal e os filhos Fernando Antônio Galiza Montenegro, Manoel Montenegro Neto e Olavo Lacerda Montenegro Filho.  Olavo Montenegro faleceu de insuficiência cardíaca, no dia 31 de outubro de 1999, um domingo à tarde. Ao pressentir a morte, pediu ao filho Fernando para ser enterrado em uma cova rasa na terra abençoada e fértil do Assu, que tanto amava. Com o passar do tempo, a família providenciou um jazigo. Múltiplo e plural, deixou sua marca indelével na política e no empreendedorismo potiguar. Partiu para o plano superior com a alma tranquila dos sábios.  Carlos Frederico Lucas é articulista, poeta e contista.  Fonte  Fotografia: Olavo Lacerda Montenegro, acervo de família.  Texto: Depoimentos da família. 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Mossoró volta às origens religiosas? Padre João Medeiros Filho A indicação de Dom Francisco de Sales Alencar Batista, um frade carmelita, para bispo de Santa Luzia de Mossoró, reacende os questionamentos a respeito dos primórdios do povoamento e evangelização mossoroense. Padre Sátiro Cavalcanti Dantas incentivava os pesquisadores a aprofundar o tema. Destaca-se o artigo do professor Davi de Medeiros Leite – membro da Academia Mossoroense de Letras e da Academia de Ciências Jurídicas e Sociais de Mossoró – publicado no Jornal De Fato, em sua edição de 17 de fevereiro corrente. Há anos, conheci no Rio de Janeiro Frei Tito (Bartolomeu) Figueiroa de Medeiros, da Ordem do Carmo. Fora-me apresentado por um amigo comum: o procurador federal Carlos Davis, hoje sacerdote do clero da arquidiocese carioca. Frei Tito estava concluindo o doutorado em Antropologia no Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Não raro, o erudito frade discorria sobre assuntos ligados à sua Ordem religiosa, dos quais era exímio conhecedor. Lamentava o desconhecimento de fontes eclesiásticas sobre a caminhada de seus confrades no Nordeste brasileiro. Assim se expressou: “Não se pode ignorar os arquivos da Arquidiocese de Olinda, da Província Carmelitana em Recife e da Casa Geral em Roma.” Porém, são ainda escassas as informações disponíveis sobre a presença dos frades no RN. Um desafio para clérigos e historiadores. É incontestável a importância dos filhos de Nossa Senhora do Carmo, no que tange à evangelização do Nordeste. Foram assumindo a catequese em diversas localidades, após a expulsão dos jesuítas do Brasil. É relevante a sua influência em algumas regiões potiguares. Padre Miguelinho, um dos líderes da Revolução de 1817, no início de sua vida clerical foi um frade carmelita, depois sacerdote secular, pertencendo ao clero de Olinda. Se o renomado norte-rio-grandense e líder político-religioso optou primeiramente por ingressar na vida carmelitana, trata-se de um indicativo de que os conventos eram atuantes em terras potiguares. Atualmente, há quatros prelados carmelitas, integrantes do Regional Nordeste II da CNBB, compreendendo Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Segundo Câmara Cascudo, os filhos da Virgem do Carmo aportaram no RN por volta dos anos de 1701-1702.  Foram enviados para cá, a fim de “pregar o Reino de Deus” (Lc 9, 2). À época, era bispo de Olinda Dom Francisco Lima (ou Lemos), membro da Ordem do Carmo, exercendo o ministério naquele bispado, de 1695 a 1704. Este dado relevante não é citado pelos estudiosos. Em 1692, o aludido dignitário foi ordenado bispo para a diocese de São Luís do Maranhão, entretanto não chegou a tomar posse canônica. Durante o seu pontificado na Sé de Olinda, os carmelitas floresceram bastante. Afirma-se ser ele o responsável pela vinda dos confrades para o rincão norte-rio-grandense. Em 1704, dá-se a restauração da Igreja do Carmo, em Olinda, danificada durante o período da ocupação holandesa no Nordeste. O convento de João Pessoa – cujo prédio serve hoje de sede do arcebispado da Paraíba – foi concluído no início do século XVIII, no pontificado de Dom Francisco Lima. Esteve à frente das obras Frei Manuel de Santa Teresa. A interiorização dos carmelitanos no Brasil acontece paulatinamente. As anotações cascudianas sobre a presença da Ordem no RN constituem um marco para as pesquisas. Narra aquele historiador natalense: “Frei Antônio da Conceição residiu muitos anos na fazenda Carmo. Sua sepultura foi na capela do lugarejo, dedicada à Virgem de Siracusa.” Em geral, eram anexadas aos conventos fazendas doadas ou adquiridas para a manutenção dos religiosos e de suas missões. Receberam da Coroa portuguesa sesmarias, cuja renda ajudaria na catequização indígena. A vinda dos frades do Carmo para o RN ocorreu após a expulsão dos holandeses no final do século XVII e início do século XVIII. Fixaram-se na aldeia de Gramació (Vila Flor) e perto do Rio Upanema, no território da paróquia de Apodi. A opção por essa localidade deve-se às condições favoráveis para o plantio e criação de gado, fundamentais para a manutenção da vida conventual e a catequese indígena. Os frades provinham dos conventos de Goiana e Recife (PE). Viveram a recomendação de Cristo: “Ide pelo mundo inteiro e proclamai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16, 15).

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

ORIANO: ÚLTIMA ESTROFE Valério Mesquita mesquita.valerio@gmail.com Direi pouco sobre Oriano de Almeida. Outros falarão melhor porque conviveram de perto com o seu talento e a sua vida. Cláudio Galvão, Diógenes da Cunha Lima, por exemplo, Maria Luiza Dantas, Sanderson Negreiros, Enélio Lima Petrovich (que inaugurou o Memorial Oriano Almeida no anexo do IHGRN em 2001), se já não dissertaram, o farão, com certeza, com brilho e propriedade. Resolvi pronunciar-me porque gosto de pontuar atitudes e assumir gestos quando vejo algo que me desagrada. Fui à Academia de Letras me despedir do seu corpo, na sua tarde derradeira e melancólica. Não apenas movido pelo dever de colega acadêmico ou por solidariedade cristã, mas porque efetivamente ele foi um compositor e intérprete maravilhoso para a honra e orgulho do Rio Grande do Norte, cujo povo não “está nem aí”. No recinto, durante os discursos de despedida, pouquíssimos presentes. Aí começou a nascer em mim a necessidade de protestar, de me indignar, de não me calar. Comentei com Genibaldo Barros, Armando Negreiros e Ernani Rosado que ali estavam: é o menor público da vida de Oriano, quando deveria ser o maior. Ele que havia conquistado as platéias milionárias, exigentes e refinadas do mundo inteiro não conseguia reunir para o último adeus a intelectualidade de sua terra. Quanta ironia, quanto paradoxo a vida nos ensina. O maior intérprete do mundo da obra de Chopin, que encantou os palcos da arte musical, gênio da música, compositor, ocupante da cadeira nº 13 que pertenceu a Câmara Cascudo, estava finalmente esquecido. Havia atingido a “verdadeira imortalidade”. Já escrevi que Natal sofre de ataraxia, indiferença. É pobre de sentimentos. Chegou um momento, no velório, que Diógenes preocupou-se com os circunstantes para conduzir o esquife do salão ao veículo funerário. A maioria era mulheres entre reduzido grupo de sexagenários em débito com o teste ergométrico. Afirmo, sem qualquer preconceito, que talvez tenha faltado a Oriano a passagem por uma banda de forró. Resta a esperança de que o nome, a importância do que fez como musicista, intérprete, compositor e escritor não desapareça. Não tenho dúvidas de que Oriano Almeida é maior do que os ausentes. A sua obra tem abrangência nacional e internacional. Simples, não buscava os refletores da fama. Ela vinha até ele. Nem o elogio fácil. Já disse que na vida quando se passa dos 60 ou 70 anos, torna-se estatística. Diferente dos países mais civilizados. E Oriano se foi com 83. Fica para os pesquisadores, memorialistas e estudiosos da música e da obra que ele nos lega, a tarefa permanente de afirmar que Oriano Almeida vive. Na frase, que não é minha e nem sei de quem, mas que eu gosto de lembrar: “Não se acaba o homem. Constrói-se a cada dia sua performance”. (*) Escritor.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

A cultura do jeitinho Padre João Medeiros Filho Quando estudei na Bélgica, em várias ocasiões, ouvi de colegas europeus insinuações de que não há leis no Brasil. De forma irônica e generalizada, afirmavam: “Tudo não passa de uma brincadeira.” Falavam que, em nossa pátria, vigora apenas a “cultura do jeitinho”. E, com uma dose de crítica e empáfia, ousavam afirmar que nossa legislação lembra os adornos natalinos: reluzem, embelezam e encantam, mas apenas enfeitam. Aquilo que, à época, me soava como um acinte, hoje parece aproximar-se da realidade. Atribui-se a Charles De Gaulle a seguinte frase: “O Brasil não é um país sério.” Segundo alguns historiadores, a expressão é de autoria do diplomata Carlos Alves de Souza Filho. Pronunciadas ou não pelo ex-presidente francês, as palavras tentam rotular a nossa identidade cultural e nacional. Na Europa, apesar de traumatismos pós-guerras, do pseudo-espírito de superioridade, dos problemas linguístico-culturais, político-sociais, migratório-populacionais etc., as instituições talvez funcionem melhor. Os cidadãos são formados no patriotismo, na obediência e disciplina. Não se joga lixo nas ruas; cumpre-se horário; observam-se filas, espaços para idosos, regras de trânsito. Estacionam no lugar indicado, sem invadir a vaga ao lado. São pequenos gestos que revelam a formação e índole de um povo. O meio ambiente e o próximo são altamente respeitados e valorizados. É bem conhecido o ditado inglês: “The way you drive, the way you live” (O modo como você dirige diz como você vive). Na verdade, ao dirigir, mostra-se um pouco de si mesmo. Mas, bem longe dos semáforos, estradas, estacionamentos ou garagens, reside a origem de vários problemas brasileiros, dentre eles a incapacidade de conviver com o não. Às claras ou à sorrelfa, invadem-se espaços e tolhem-se direitos alheios. Esquece-se aquela lição de nossos pais: “Isso não pode, meu filho.” Estudiosos do comportamento humano dizem que nosso caso envolve uma negação sistemática (infantil?) de autoridade e limites. Na verdade, dizer ou ouvir uma negativa é desagradável ou constrangedor, seja para quem dá ou recebe, mesmo que necessário. Apesar da decantada cordialidade e gentileza do brasileiro, muitos têm o hábito de escutar músicas com o som bem alto; abrem-se as janelas dos apartamentos ou carros, aumenta-se o volume. Isso porque acreditam que os vizinhos também vão curtir suas preferências musicais. Os veranistas que o digam! De forma irreverente e deseducada, colecionam-se pequenas transgressões até atingir o nível elevado, no qual se esbalda um número de pessoas, ignorando a ética, dilapidando o erário, sem o menor constrangimento. E talvez será pior no futuro, dizem alguns entendidos. Não se pode mais dizer “Isso não é permitido!”, para não traumatizar, tolher a liberdade e criatividade das crianças; tampouco se podem aplicar punições para não deixar marcas profundas. Há uma dificuldade grande para se ouvir e aceitar uma negativa, pois ninguém deseja ser contrariado. Cristo pregava: “Seja o vosso sim, sim; o vosso não, não” (cf. Mt 5,37). Esse ensinamento ainda não foi bem assimilado até agora por muitos. Há alguns meses, bandidos aterrorizaram e quase pararam o Rio Grande do Norte, alegando “indevidas” proibições ou interdições. Certa vez, presenciei uma cena vexatória. Numa livraria-papelaria, uma senhora, aparentemente fina e elegante, pediu para xerocar um livro inteiro. Com bons modos, a funcionária da loja informou, discreta e cortesmente, que cópias de livros não são permitidas, ferem a lei dos direitos autorais. Ouviram-se desaforos pronunciados pela “gentil e chique senhora”. Essa saiu indignada, sacudindo sua vistosa bolsa Louis Vuitton (seria original, réplica ou genérica?). O valor do livro era um pouquinho mais alto do que o preço das cópias. Como falar então de justiça, honestidade, cidadania e transparência, neste país, no qual sequer se consegue obedecer a regras e convenções, as mais comezinhas? Cristo afirmou para seus apóstolos: “Quem não é fiel no pouco, não será no muito” (cf. Mt 25,23). O que dirão atualmente alguns professores e diretores de escolas sobre impropérios de pais, cujos filhos são punidos por transgressão disciplinar ou rendimento acadêmico inexpressivo? Não se pode nem se deve confundir nunca cordialidade e informalidade com indisciplina e permissividade. A Bíblia diz: “Ensina ao jovem qual o caminho a seguir e ele não se desviará” (Pv 22,6).

sábado, 17 de fevereiro de 2024

 Refletindo sobre a Quaresma Padre João Medeiros Filho Em português, a palavra Quaresma é uma forma sincopada do termo latino “quadragesima”. Este, por sua vez, é o número ordinal de “quadraginta”, significando quarenta. A liturgia católica costuma recorrer a símbolos. Estes são abertos e ricos em interpretações, enquanto as palavras são, por vezes, limitadas. Na Quaresma, partindo da simbologia numérica, usual na cultura hebraica, a Igreja recorda-nos os quarenta anos de caminhada do Povo de Deus em busca de Canaã, os dias e noites esperados por Moisés para receber o Decálogo. Lembra ainda idêntico período vivido por Cristo, antes de ser tentado. Ela convida-nos a uma maior consciência da nossa condição de filhos de Deus e nosso compromisso com o Evangelho. Proporciona um retiro aos cristãos a fim de realizar uma revisão de vida. Não se trata apenas de tempo litúrgico. Representa igualmente momentos importantes de nossas existências, nos quais devemos aprofundar, com o auxílio da graça divina, nossa vivência cristã. E para isso, é indispensável defrontarmonos com nossos erros e virtudes. Conclama ao despojamento interior para o renascimento pela escuta atenta de Deus. Sua Palavra ilumina nossa vida e transforma nosso íntimo. O tempo quaresmal exorta os fiéis ao jejum e à conversão. Atualmente, na administração pública e linguagem biomédica fala-se muito em cortar gorduras. No jejum, deseja a Igreja que sejamos capazes de eliminar os excessos do desamor e egoísmo, da vaidade e injustiça. Nos dias de hoje, enfatiza-se o culto do corpo. Várias modalidades de exercícios físicos são praticadas. Jejuar é como malhar a alma, banir o que lhe é supérfluo ou nocivo para dar lugar à fome de Deus. No primeiro domingo do período quaresmal, lê-se o episódio da tentação de Jesus. Somos instados a refletir sobre o sentido do deserto. Este reveste-se de significado especial na Sagrada Escritura e na espiritualidade cristã. À primeira vista, não é habitual se deparar ali com seres vivos. Sua imensidão e silêncio levam-nos a algo mais profundo: a descoberta de Deus. Este é a única vida que se pode sentir na vastidão despovoada. Os fiéis veterotestamentários, antes de chegar à Terra Prometida, passaram também pelo deserto. Este precede qualquer experiência mística, sendo, antes de tudo, um estado de espírito. Cristo veio estabelecer o Novo Testamento para a humanidade. Teve de enfrentar o deserto: ícone de nossa fragilidade, impotência e solidão. Sentimo-nos, não raro, abandonados, tristes e sozinhos em nossos sofrimentos, angústia, perplexidade, instabilidade e tribulações. Isto representa a figura de Cristo, ao ser provado pelo demônio. O texto de Marcos tem uma peculiaridade. Não cita a quantidade de tentações, como os de Mateus e Lucas. O autor do segundo evangelho restringe-se a afirmar que Cristo foi conduzido ao deserto e “aí tentado por Satanás” (Mc 1, 13). As provocações e provações, sofridas por Ele, representam a realidade humana. O materialismo, o consumismo, gerando miséria e dependência, a exploração dos mais fracos permanecem fazendo vítimas. A manipulação religiosa aproveitando-se da fé ingênua do povo simples, em benefício de pseudo líderes e grupos inescrupulosos, constitui-se numa tentação que fala bem alto na sociedade hodierna. A idolatria do poder, passível de proporcionar corrupção, marginalizando ou excluindo indefesos e necessitados, continua sendo a expressão do ideal demoníaco. Há uma série de novas e falaciosas atrações, procurando iludir o ser humano e estabelecer o reino de Satanás, e não o Reino de Deus e do Amor. Diante disso, entende-se o apelo do Mestre: “O Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15). Há outro detalhe no relato de Marcos: “[Jesus] Vivia entre animais selvagens e os anjos O serviam” (Mc 1, 13). Ele veio mostrar a harmonia da criação, revelando a verdadeira ecologia. Da narração de Marcos, infere-se uma metáfora: ao ceder às tentações do demônio, o homem mostra-se bestializado. O poder, o ter e o prazer poderão nos tornar alienados e presunçosos. Mas, Cristo vencendo o demônio, assegura-nos que Ele veio aniquilar a indiferença, a injustiça e a violência. Cada um conhece o seu deserto e as suas seduções. O Mestre ensina-nos como superar tudo. “Coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16, 33), assevera-nos o Salvador.

 O significado bíblico-espiritual das cinzas Padre João Medeiros Filho A imposição de cinzas remonta ao Antigo Testamento. Delas se cobriu Mardoqueu e se vestiu com panos de saco, ao saber do decreto do Rei Assuero, condenando à morte os judeus residentes na Pérsia (Est 4,1). E Jó declara a sua contrição assim: “Arrependo-me no pó e nas cinzas” (Jó 42, 6). Daniel, ao profetizar a tomada de Jerusalém pelos babilônios, escreveu: “Voltei o olhar para Deus, procurando fazer preces e súplicas com jejuns, vestido de tecido rústico e coberto de cinzas” (Dn 9, 3). Após a pregação de Jonas, “o povo de Nínive se vestiu de roupas grosseiras, impondo-se cinzas. O rei levantou-se do trono e sentou-se sobre elas” (Jn 3, 5-6). Tais exemplos demonstram essa prática religiosa, como símbolo de dor, compunção, penitência e conversão. Cristo aludiu a esse costume, dirigindo-se aos habitantes de Corazim e Betsaida. Eles não se arrependeram de seus pecados, apesar de terem presenciado milagres e ouvido a Boa Nova. “Se em Tiro e Sidônia tivessem sido realizados os milagres feitos no meio de vós, há muito tempo teriam demonstrado arrependimento, vestindo-se de cilício e cobrindo-se de cinzas” (Mt 11, 21), advertiu Jesus. A Igreja, desde seus primórdios, celebrou este ritual com um simbolismo análogo. O teólogo Tertuliano aconselhava o pecador a “vestir-se com tecido de estopa e cobrir-se de borralho.” O historiador descreve o bispo Natálio apresentando-se com esses trajes ao Papa Zeferino para suplicar-lhe o perdão. No cristianismo medieval, quando o penitente saía do confessionário, o sacerdote impunha-lhe cinzas para lembrar-lhe que o “velho homem” tinha sido destruído, dando lugar ao “novo homem”, segundo a expressão do apóstolo Paulo (Ef 4, 24). Por volta do século VIII, as pessoas que estavam prestes a morrer, eram deitadas no chão sobre um tecido rude e nelas se jogava pó. O sacerdote, aspergindo-as com água benta, dizia: “Lembra-te, ó criatura, que és pó e a ele hás de voltar” (cf. Gn 3, 19). Este rito foi tomando uma nova dimensão espiritual e passou a significar morte ao pecado em seus diversos aspectos: mentira, orgulho, injustiça, inveja, ódio, violência etc. Com o passar dos anos, tal hábito foi associado ao tempo quaresmal. Neste, somos convidados a sepultar o velho homem existente em cada um de nós para ressuscitar com Cristo, na Páscoa. As cinzas utilizadas na quarta-feira são obtidas com a queima das sobras de palmas bentas no Domingo de Ramos do ano anterior. O sacerdote as abençoa e impõe sobre os fiéis, dizendo: “Lembra-te que és pó e ao pó hás de voltar” (Gn 3, 19), ou então: “Converte-te e crê no Evangelho” (cf. Mc 1, 15). Essa cerimônia é um convite à preparação para a Páscoa pela vivência da Quaresma, tempo privilegiado para uma revisão de tudo o que impede nossa caminhada de fé e amor. A participação no ritual do início quaresmal expressa duas realidades fundamentais: a consciência de nossa efemeridade e a fé em nossa ressurreição. Cristo ressurgiu dos mortos, prometendo-nos também que ressurgiremos. É conhecida na mitologia grega a força de Fênix, que renasce das cinzas. Estas simbolizam mudança radical, na medida em que representam destruição. Lembra-nos que delas poderemos brotar, como criaturas renovadas pela graça inefável de Deus. Por essa razão, somos chamados a nos converter ao Evangelho de Cristo, libertando-nos da arrogância, do egoísmo, da vaidade; enfim, de tudo o que nos afasta do Divino. A palavra marcante com que se abre a celebração quaresmal – iniciada na quartafeira, após o carnaval – é conversão. Este termo de origem hebraica, indica mudança interior, dir-se-ia, transformação espiritual. Isto Cristo veio trazer com sua mensagem. Ele indicou ao ser humano um novo caminho e modo de ser e viver. O apóstolo Paulo, de forma inspirada, chama-O de “novo Adão”, uma nova humanidade (cf. Rm 5, 12-21). Com a Quaresma iniciase a Campanha da Fraternidade. Neste ano, versa sobre a “Fraternidade e amizade social”. Que as cinzas impostas sobre nossas cabeças marquem o fim de nossos preconceitos, egoísmo, violência, indiferença e tudo o que atenta contra a amizade e os laços de Deus nos corações dos homens. Afirmou o Mestre: “Todos vós sois irmãos” (Mt 23, 8).

 HOMENAGEM AO AMIGO LAURO BEZERRA




Faleceu, na madrugada desta sexta-feira (16), no Hospital São Lucas, em Natal, o professor universitário aposentado, médico e ex-deputado estadual Lauro Bezerra, aos 90 anos.
Vim conhecer melhor Lauro Gonçalves Bezerra, filho do ex-deputado João Bianor Bezerra, colega do meu pai, na antiga Assembleia Legislativa, a partir dos anos noventa quando juntos servíamos a mesma instituição, por outorga popular. Lauro combatente, atento, ágil e altivo, honrou o Poder Legislativo do Estado através do seu comportamento íntegro e irrepreensível. Presidiu como vice-presidente, inúmeras vezes, as sessões plenárias e a própria Casa. Como debatedor dos problemas da saúde demonstrou a experiência adquirida como secretário de saúde estadual, pró-reitor da UFRN, além de larga visão administrativa quando passou por postos diversos da vida pública. Na família Bezerra, da qual foi um dos expoentes, pontificaram ainda os saudosos “majó” Theodorico Bezerra (tio) e Aluízio Bezerra (irmão), Fernando Bezerra (irmão), Kleber Bezerra (primo), entre outros memoráveis nomes que se destacaram desde Santa Cruz, a Escola de Sagres, e se estenderam por todo o sertão do Trairí.
O ex-deputado Lauro Bezerra deixa viúva, Dona Luzi, com quem teve três filhos: Bianor, Solange e Suzana.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

 “Vá se queixar ao bispo” 

Padre João Medeiros Filho 

Eis uma expressão, ainda ouvida ou lida, aqui e acolá. É anterior à fundação do Reino de Portugal. Historiadores, especialmente aqueles da área do Direito, relatam que a máxima já foi ordenamento jurídico na Península Ibérica, entre 480-711. Constava do Código Visigótico (Livro II, Título II, Item XXVIII). Permitia às pessoas, inconformadas com o veredicto de tribunais e magistrados, dirigir-se ao bispo em grau recursal. O pleito era possível, quando os interessados consideravam a sentença proferida, em discordância com o regramento em vigor. Infere-se, portanto, que o bispo representava justiça,sentimento humanitário para a população. Segundo certos autores, o jargão surgiu, entre nós, no século XVII, na cidade do Rio de Janeiro. À época, os comerciários fizeram campanha, exigindo que as lojas fechassem aos domingos e dias festivos para o cumprimento do mandamento religioso. Naquele tempo, por força da Concordata entre a Santa Sé, Portugal e posteriormente o Brasil Império, o catolicismo era religião de Estado. Daí todos deveriam guardar o Dia do Senhor. Os lojistas promoveram manifestações públicas e passeatas, ameaçando fazer greve. Os patrões mantiveram-se intransigentes. Como última tentativa levaram um abaixoassinado a Dom José de Barros Alarcão, prelado do Rio de Janeiro (1680), solicitando intercessão junto ao Rei de Portugal, Dom Afonso VI. Desejavam que editasse uma lei específica, mediante a qual os fiéis trabalhadores pudessem cumprir os preceitos dominicais e nos dias santificados. Pode-se deduzir a presença da Igreja, enquanto última instância de resposta contra a violação dos direitos humanos. Para Dom Jaime Luiz Coelho, primeiro metropolita de Maringá (PR), o adágio remonta ao Brasil colonial. Na época, vigorava o regime do Padroado. Consequentemente, a Igreja Católica, por meio das dioceses, detinha certas atribuições e prerrogativas no foro civil. “Va queixar-se ao bispo” tornou-se popular no Brasil seiscentista e setecentista. A autoridade diocesana chegava a gozar de competência legal até para mandar prender rapazes que “ofendiam às donzelas” e recusavam as núpcias. Até bem pouco, era costume algo semelhante no Seridó. Quando alguma moça era “desonrada”, conduziam-na imediatamente à presença do dignitário eclesiástico para que se providenciasse urgentemente o casamento. Isso era motivo de força maior para a dispensa dos proclamas canônicos. Enquanto chanceler da cúria diocesana de Caicó, fui testemunha de vários acontecimentos dessa ordem. Convém lembrar que no Brasil concordatário, os prelados eram investidos de alguns poderes administrativos e jurídicos. Assim, era natural as pessoas verem no pastor a porta para a solução dos seus problemas pessoais mais prementes. A figura episcopal era respeitada por todos, sobretudo porque acreditavam ser ela a legítima representante de Deus entre os homens, capaz de oferecer luzes e apontar caminhos para seus sofrimentos. “Eu vi a humilhação de meu povo e ouvi o seu clamor” (Ex 3, 7). Poder-se-ia pôr tais palavras nos lábios dos antístites daqueles tempos. Nessa mesma direção, o jornalista e professor Jairo Faria Mendes apresenta sua versão para o axioma. Menciona que em Portugal – e nos seus territórios ultramarinos – em razão do Padroado, a autoridade diocesana exercia também a função de Ouvidor da Coroa, responsável por receber as queixas dos cidadãos. Assim, no Brasil colonial, os pontífices tinham ainda o encargo de ouvir as lamúrias e o relato de problemas materiais dos fiéis. Isto deu azo à difusão do aforismo “Vá se queixar ao bispo”. Hoje, os dignitários episcopais não estão mais revestidos de jurisdição civil. É importante frisar que, à época, a história registra a figura do bispo humanitária, paternal,solidária e clemente. Atualmente, a quem a população sofrida, injustiçada e desesperançada irá desabafar? Quem ouvirá seus rogos contra desmandos públicos, injustiça, fome, desemprego, violência, assistência precária de saúde, insegurança, falta de habitação, água e vergonha? Quem haverá de interceder, quando se adoecer de arboviroses e epidemias? Outrora, o bispo cuidava de tudo aquilo que o Estado negligenciava ou era incapaz de resolver. Por sua compreensão, senso de justiça e caridade, ele tinha condiçõesreais de solucionar impasses. Nos dias atuais, necessita-se de alguém – máxime entre executivos e legisladores – sobre quem se possa afirmar: “Teve compaixão da multidão [sofrida e sem esperança], pois era como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 36).

 

CANGAÇO: PORQUE SÓ LAMPIÃO FICOU NO IMAGINÁRIO POPULAR.
O cangaço, uma das páginas mais cruentas, vivida nos ermos mais distantes da pancada do mar, onde o sol se faz rosa, para se pôr. Tem sua grota de viço nas amarguras da vingança, no refúgio de quem cometera um crime, e por último, na sua fase mais ignóbil, desprezível que é o cangaço meio, fim, quando ações de rapina, com plenitude de prática, no período Lampiônico, com mais intensidade, nos tempos que medeiam os anos de l926 a 1938. quando ocorreu o epílogo do cangaço na gruta de Angicos, em Sergipe.
Mas, o meu paleio de copiar*hoje, não é esmerar o cangaço nem como conduta criminosa, hedionda, nem tão pouco, adjetivando seus praticantes como “heróis extraviados”, como dissera um dos meus gurus, Ariano Suassuna.
A selvageria lampiônica, em muito supera o suplício nas ordenações manuelinas e afonsinas, que no brasil fez-se prática nos episódios de Felipe dos Santos e do próprio Tiradentes, com cênico de esquartejamento e exposição na Cruz de Malta, uma cristianização à similaridade do que aconteceu com Jesus, na era de Tibério César.
Porém, rabiscar na historicidade dos fatos e contextos, o que levou os habitantes dessas terras de trópicos e de anos de magrém, amealhar no seu imaginário, não um juízo de reproche aos hunos cangaceiros, porém, mitigar uma leitura, que transformou o Estado disciplinado em réu e o desvario da violência do cangaço, numa possibilidade de ser, o que nosso Mestre Cascudo vislumbrou, serem bandidos diferenciados dos criminosos comuns, portanto, uma saga que nascia de uma vertente dotada de escudo ético. Aquele que sofrera uma injustiça, um constrangimento, não reparados pelo Estado.
Saliente-se que esse juízo não é desnudado de motivações. Por necessário trazer o exemplo de como Lampião se portava, no trato com o pequeno sitiante criador. Sempre vislumbrava na escolha de uma rês de gado vacum, por uma cabeça escoteira, sem prenhez ou amojo, ou na fase lactente. Escolhia um toureco, uma garrote, para fazer a carne de sol. E nessas circunstâncias, sempre ordenava que o seu estado maior, procedesse no pagamento.
De bem noticiar, que quando a polícia se arranchava na casa de um criador do Sertão, proprietário de apenas uma semente da espécie, ordenava o abatimento do “boi de campinadeira”, a força motriz da roça, daquele desvalido sertanejo, saindo sem o devido pagamento.
Por ressaltar também, que no espetáculo cênico de CHUVA DE BALA NO PAÍS DE MOSSORÓ, os heróis não são os defensores da urbe potiguar, mas, a saga lampiônica, começando pelo próprio rei do cangaço e seus lugares tenentes, Sabino de Gore*, Jararaca. Embora tal episódio, seja um dos malogros da epopeia do cangaço sob a égide de Virgulino Ferreira da Silva, que há alguns meses antes, no dia 26 de novembro de 1926, na batalha de Serra Grande, PE, houvera derrotado as forças de quatro estados nordestinos, um contingente de trezentos homens, entre macacos* e cachimbos*, com a apenas um grupo de 68 cangaceiros.
*Sabino de Gore: Sabino era filho de uma negra cozinheira com o Cel. Marçal Diniz, meio irmão de Marcolino Diniz, coiteiro de lampião, e cunhado de José Pereira de Princesa, pois, casado com Xanduzinha, aquele da melodia de Luiz rei do baião.
*Paleio de copiar: Os antigos dos sertões do Seridó, ante a falta de entretenimento como nesses tempos de hoje, se aboletavam na sala subsequente ao alpendre, o copiar, sala grande, de recepção, e nesta, no período que medeia a hora do Ângelo e a última ceia, permeava a estação da oralidade: Uma discorrência sobre as façanhas dos homens de destaque, histórias do pavão misterioso, Doze pares de França e assim por diante. Era a estação da oralidade.
* Macacos: adjetivo para nominar as tropas da polícia, volantes, que combatiam o cangaço.
*Cachimbos: civis com soldo, ou salário pagos pelo governo, viviam na "tubiba" de Lampião. Os cabras de Nazaré (Vila Bela) depois Serra Talhada, era civis que tinham rixas de Lampião. Quase todos fora engajados na corporação militar foram pra reserva como oficiais.
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