quinta-feira, 20 de maio de 2010

" O SANTO OFÍCIO "




Através de ‘O Santo Ofício’, blog de Franklin Jorge, o meu amigo Pedro Simões Neto presta uma justa homenagem a Armando Roberto Holanda Leite, com o sugestivo título O RECURSO EXTRAORDINÁRIO.


ARMANDO HOLANDA,
O RECURSO EXTRAORDINÁRIO

“Amigo é aquele que no seu silêncio, escuta o silêncio do outro” (Provérbio judeu)

Os que são devotados às amizades, já têm um capital inicial considerável: são todos anjos. A partir daí, evoluem até a gradação maior de arcanjos, permanecem onde estão, ou podem se converter em anjos caídos, que nem Lúcifer.
Armando Roberto Holanda Leite, a quem eu chamo de Beto, acrescentando, nas ocasiões mais solenes, o aditivo de “Seu Paulo da Farmácia”, numa alusão ao seu pai, é arcanjo. Mais que isso, é o irmão que eu não tive. Dizem os produtores de bons clichês que o verdadeiro amigo é como se fora um irmão com a vantagem de ter sido escolhido por nós para o posto. Pois é assim mesmo.
Comparo sempre Armando à minha irmã Joventina : são arcanjos-paradigma. Quem os tiver como amigos, contarão com alguém que fica sempre por perto quando os outros se vão ou desistem.
E ele está sempre por perto, montando guarda numa atalaia às vezes solitária, solidário, arrimo silencioso, aquele que oferece o ombro, sem dizer uma única palavra, certamente por entendê-las supérfluas, ociosas, inúteis. Foi assim quando perdi o meu pai, o ser humano que mais amei neste planeta; quando meu primeiro casamento se dissolveu e me vi destituído da companhia dos filhos; quando lançaram-me á infâmia, com acusações forjadas, no intuito de inviabilizarem qualquer projeto que pudesse ter acalentado; quando me exilei voluntariamente em Ceará-Mirim, convalescente de uma cirurgia de revascularização; quando constituí nova família... enfim, nunca me deixou na orfandade fraterna.
Um amigo assim constitui o maior patrimônio que um ser humano pode dispor.
Mas, digo, tomando de empréstimo a sabedoria popular: ninguém é bom porque é meu amigo; é meu amigo exatamente por ser bom. Beto é meu amigo porque é bom... mas não perfeito. Recebo com desconfiança a amizade dos seres gravados apenas pelas virtuosidades, sem defeitos, sem o condimento picante de algumas imperfeições que não os desconstroem, mas os singularizam e dão-lhes a feição humana perceptível, evidente, visível. Ao invés, os muito virtuosos se assemelham à lua ou aos icebergs – mantêm invisível uma das faces, ou a parte mais ofensiva de sua estrutura. Exatamente porque são ilegíveis por nós, míseros mortais, “indecodificáveis”, porque não há um paradigma humano.
Penso como seria Armando sem os seus defeitos...algo insosso, insalubre, fosco. Sem a sua “verve” um tanto cáustica, o seu imperialismo afetivo que desconstitui quaisquer outros liames paralelos, sem a franqueza, cortante como uma adaga afiada, mas sempre oportuna, dando razão ao adágio segundo o qual os amigos devem dizer o que precisamos ouvir e não o que queremos ouvir.
Para agradar e concordar sempre conosco, podemos adotar um bajulador, ou uma lagartixa.
É um tanto desajeitado nos agrados, tal outro amigo querido, Jussier Magalhães, cirurgião plástico e dos maiores pintores do nosso estado, convocado por Deus para o Seu Reino. Entendia o sem-jeito de Jussier e entendo o de Armando. As almas muito sensíveis, precisam resguardar o seu carinho, porque se vulnerabilizam, tal como se expusessem as suas “fraturas”, correndo o risco de que alguém, valendo-se dessa fragilidade, ponha o dedo na ferida. Por isso, preservam-se, adotando uma carapaça de indiferença ou de rudeza no ofício do carinho, que as protege, afastando os predadores.
E, por mais dureza que amostre a sua armadura, ela é como a concha em relação à ostra. E Beto vive em permanente transição, entre a ostra e a pérola.
Outro traço marcante na personalidade do meu amigo, consiste no fato de que ele foi fatalizado a viver togado. Antes de me tornar seu amigo, e conhecê-lo mais intimamente, dava-me a impressão de que dormia de paletó e gravata, e, sob certas circunstâncias, envergando uma toga forense, apesar de não ser formalista. Era o seu jeito de ser, de encarnar o profissional do direito que se abrigava nele vinte e quatro horas por dia. Nasceu advogado e será assim toda a vida, sem a franquia da aposentadoria.
Foi Professor de Direito, com Mestrado realizado na PUC de São Paulo, Promotor, Procurador da República e, nessa condição, Procurador Regional Eleitoral junto ao TRE e Chefe da Procuradoria, Consultor Jurídico do Estado, Advogado militante, titular de uma das maiores bancas do Estado do Rio Grande do Norte. Jamais se afastou da carreira que elegeu como o seu norte profissional e existencial.
Acredita no pontificado e na liturgia do Direito, como crê na sua própria existência, rememorada a cada momento na carnadura e na alma imortal, testemunhos da vitalidade perene, mesmo quando cessa a vida temporal. E nada lhe é mais prazeroso do que o envolvimento com as pesquisas, os arrazoados e os leguleios jurídicos, sobretudo quando oferecem um nível maior de complexidade. É, sobretudo, (valham os céus) um workaholic, uma criatura fascinada pelo seu trabalho.
A bem da verdade, de uns tempos para cá, abriu um espaço para si mesmo, entre um e outro trabalho. Vai a restaurantes, viaja pelo Brasil e alhures, freqüenta mais amiúde os filhos, faz hidroginástica, ouve música, vai a shows, e visita compulsivamente os “marchand de tableaux” à procura de telas que o encantem. Não reprime mais o riso, agora tornado público, que soa entre o brejeiro e o zombeteiro, antes reservado para os amigos mais íntimos. Nem sovina os comentários cheios de graça, improvisados, “na ponta da língua” sobre os personagens incômodos ou pitorescos da nossa aldeia.
É dele o comentário rápido e chistoso sobre uma pessoa notoriamente estabanada: “ela é doida e pensa que é alegre”. Mas, além do trabalho, o seu maior “hobby” é colecionar amigos... “que valham a pena”, acrescenta, sempre que me refiro a essa particularidade.
Faz profissão de fé na “intriga do bem”, predicado que Cascudo alçava ao mesmo nível das virtudes teologais, embora o considerasse raro. Entusiasma-se quando defende a integridade alheia ou transmite o testemunho de um elogio ao beneficiário.
É um vitorioso, e não por gratuidade ou favorecimento, mas porque é um combatente inato, um guerreiro implacável, mas leal, desses que dizem ao seu oponente que vão atacá-lo, e até indica o local do ataque. Um samurai, capaz de pelejar indefinidamente, com uma vantagem moral sobre o guerreiro japonês: jamais cometerá o “seppuku” na eventualidade da derrota, porque permanece no combate mesmo quando é derrotado. Recuar, talvez, mas nunca fugir da liça.
Ninguém é tão equilibrado entre os extremos como ele, exatamente porque oscila entre os opostos, o “ying” e o “yang”. Ou é ou não é. É amigo ou desafeto, não há meio termo... nem capitulações. É carne ou peixe. Não usa panos quentes, nem se serve das palavras com guardanapos de linho, para usar uma feliz metáfora de um ilustre Macaibense. Oferece a mão ao caído, deixa que utilizem o seu ombro, despoja-se em favor do necessitado, mas não é morno.
Universal, é bem informado sobre a “aldeia global” e conhece o mundo. Tem gosto refinado: gosta de bons vinhos e de artes plásticas. Possui expressivo acervo de obras de Newton Navarro, em sua melhor fase. No entanto, mantém Macaíba, a cidade de sua infância, lá dentro do peito, guardadinha, a salvo do pandemônio da globalização.
Por isso não nos causa nenhuma estranheza quando, convocado para o café da manhã, ou o almoço, provoca a comadre Jailza, minha mulher: só vou se tiver tapioca, cuscuz, mungunzá, guiné, farofa d´água...!
Mantém uma distância respeitosa do computador, não o teme, nem o reverencia, tem-no como um mal necessário. Em suas relações com esse complicado instrumento de trabalho, utiliza Mércia, a sua fiel e eficiente auxiliar, como uma espécie de “médium”, a que incorpora as mensagens do etéreo e as converte em algo intelegível. Prefere mesmo a sua inestimável máquina de escrever IBM elétrica, adquirida como inimaginável avanço tecnológico nos anos setenta. “É suficiente” – arremata – “para um menino de Macaíba que escrevia a lápis com certa dificuldade... já é muita coisa”. (Nesse aspecto, lembra-me outro grande amigo, o escritor e desembargador aposentado, Manoel Onofre de Souza Júnior, meu colega de turma, que supera Armando na fidelidade aos anos dourados: usa uma Olivetti mecânica e explica que a sua serventia contribui para a formação de um acervo histórico e auxilia o trabalho dos pesquisadores)
É afoito. Certo dia me procurou e disse que precisava de um parecer sobre matéria cível, para apoiar uma tese num dos seus arrazoados. Disse-me que buscou a opinião de um dos mais festejados civilistas do país e que recebera um documento óbvio, considerando-se os magistérios reconhecidamente brilhantes do mestre jurisconsulto. Pediu-me que eu o fizesse, pois tinha certeza de que seria melhor que o elaborado pelo douto professor.
Com certa relutância e muita insegurança, aceitei o encargo, para atender ao amigo. Nunca me dediquei com tanta devoção a um trabalho. Trabalhei com ardor, febril, atento, analítico, minucioso. Dois dias depois o entreguei. Armando leu, degustou, saboreou e, silenciosamente, abraçou-me dizendo que era o que queria.
Deus concedeu-lhe duas mães. A legítima, Dona Tetê, que o aguardava em Macaíba nos fins de semana, nas férias, vindo do Marista e depois da Faculdade de Direito, e Tia Ana, que o acolhia em Natal. Deu-lhe um pai que valia por dois, um homem com virtudes acima da média, bom amigo, caridoso, pacífico, conciliador, generoso. E três irmãs: Ana Rosa (a mais velha), Adala Rejane (Nani) e Andréa, a mais nova, juiza de direito. Floresceram-lhe cinco filhos, bonitos e valiosos, por ordem de idade: Henrique, Hugo, Haroldo, Paulinho e Beatriz, final de rama e única mulher, preciso dizer mais alguma coisa? Um casal de netos – por merecimento, não por antiguidade.
Sem nenhum demérito para uma família tão rica e tão devotada uns aos outros, destaco, por minha conta e risco, a figura de Tia Ana. Que acolheu, além de Beto, sua irmã Ana Rosa e dedicou-se a outra parente, Deijair Henrique Borges, minha amiga, ex-diretora e professora da Escola de Música da UFRN.
Não sei porque, quando via Tia Ana, lembrava-me de uma mamãe Noel – coisas de quem tem a mente muito fértil e consegue “ver” com os olhos da alma. De pele alva, como os habitantes da fantástica terra de São Nicolau, alguma coisa de avermelhada nas bochechas, lembrava-me uma maçã. O conjunto era de uma harmonia indiciadora – era uma fada-madrinha. Para Beto, era uma mãe-avó, com todos os predicados da mãe e uma cobertura caramelizada da avó.
Mas não a imaginem complacente, dessas que querem barganhar a afeição dos filhos-netos com excessiva tolerância. Ao invés, ensinou disciplina e estoicismo, o desprezo pelas facilidades, que, como dizem os americanos “easy come, easy go” e o valor da luta na perseguição e conquista dos sonhos. Ensinou-lhe, também, que muitas vezes não é a reta a menor distância entre dois pontos. Haveria que se planejar a caminhada, muitas vezes tomando veredas e caminhos vicinais pedregosos, íngremes e movediços . E a perseverar.
Como passava a maior parte do tempo com a Tia Ana, foi com esses ensinamentos que se tornou adulto, curtido para as batalhas que se apresentariam no seu dia-a-dia, comum a todos os meninos nascidos na pobreza digna, com vontade de ter uma identidade e um lugar sob o sol.
Por formação, era o que classificávamos, na Faculdade de Direito dos anos sessenta, um integrante da “direita”, isto é, todos os que não participavam da “frente única” que reunia os comunistas, os cripto-comunistas e os simpatizantes - a gente da esquerda. Eu mesmo reuni alguns amigos sob uma organização informal que chamávamos de MEI (Movimento de Esquerda Independente), participantes da frente única, mas eqüidistantes, tanto quanto possível da radicalização reducionista.
Pois bem, mesmo com a genuína ojeriza que os “direitistas” devotavam à turma da esquerda, Armando foi a única ajuda com que contou um nosso colega advogado, professor da UFRN, quando este foi alcançado pelos atos de exceção. O nosso Beto socorreu a família inteira até quando a vítima do ato institucional foi reabilitado. Porque não distinguia os amigos entre “esquerdos” e “direitos”, mas segundo a doutrina do afeto e a exigência da sua necessidade. Sei de dezenas de casos como esse, do efetivo apoio material, da indispensável solidariedade no momento do desespero. Nem era necessário o grito, o pedido de socorro, ou o constrangimento do pedido de esmola. Beto possui um rastreador que o mantém “antenado” nos seus amigos.
Como no ditado judaico que secunda o título, ele, no seu silêncio, escuta o silêncio do irmão aflito.
Um parente distante, beneficiário de uma aposentadoria por invalidez, cuja renda o inabilitava à sobrevivência, certo dia viu-se sem condições de pagar o aluguel de uma casa para morar. Armando cedeu-lhe um dos seus imóveis e me pediu para fazer a entrega das chaves ao beneficiário, encarecendo que o fizesse entender que o agradecimento não seria bem-vindo. Ele se sente constrangido, sem jeito, embaraçado com as demonstrações de gratidão. Apressa-se em explicar que tem receio de que o seu gesto seja entendido como uma esmola. Se pudesse, faria como os espíritas, para quem “a mão esquerda não deve saber o que faz a direita”.
Afora os pais e a Tia Ana, talvez a sua maior devoção, corresponde à contribuição mais marcante na sua vida profissional - o Professor Múcio Vilar Ribeiro Dantas, de quem foi auxiliar e o teve como orientador nos primeiros movimentos da advocacia. Ele se considera filho intelectual do grande mestre e dele herdou a inflexibiidade nas questões ético-jurídicas, a feição polêmica e o desvelado amor ao Direito. Para não perder o norte assinalado pelo ícone, cultiva uma relação fraterna com o talentoso filho do seu mestre, Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, a quem credita a mesma vocação para a ciência jurídica e o mesmo aprumo intelectual do seu pai.
Quando estava concluindo este perfil, Maria, minha filha mais nova, afilhada de Armando, pergunta o que estou fazendo. Quando a informei, ela me recriminou: “Eu sou a pessoa mais ligada a ele. Sou a sua afilhada e o chamo de tio. Por que não fui chamada para dar a minha opinião ?”. Perguntei-lhe, então, qual era. “Ele é a pessoa de mais alto astral que eu conheço”.
Nada mais foi dito, nem perguntado.


Pedro Simões – Ex-Professor de Direito, advogado, e escritor_________________________


UM SOLO DE CLARINETA PARA JALES COSTA


Amigos são anjos à paisana. Sem asas, nem auréolas, conservam, entretanto, o aspecto de Deus-Pai e Filho, mal escondido nos gestos, mais que nas palavras. Percebe-se que há neles algo único e exclusivo, uma aura de tolerância, de solidariedade, de carinho que nos envolve – a nós, os seus afins.
Jales Costa foi um desses. Partiu mas deixou um pedacinho de si em cada um dos seus amigos. E tenho certeza que no mosteiro para onde foi destacado, ainda vela por nós, aqui e ali falando sozinho, condimentando os seus comentários sobre as nossas imperfeições.
Como todos os de sua espécie, Jales era uma criatura singular. Possuidor de uma cultura jurídica e filosófica incomum entre nós, os seus colegas professores e operadores do direito, conduzia-se, nas suas exposições sobre os temas correlatos, como se estivesse comentando um artigo de jornal, ou o capítulo de uma telenovela, com simplicidade, sem afetação e de modo imperceptivelmente didático. À base do “como você sabe...” deixava-nos à vontade e adensava os seus comentários ao modo estruturalista, conceitual, dialético, analítico, a tal ponto que, mesmo não fosse esta a sua intenção, ficávamos com a suspeita de que éramos ignorantes na matéria, ou de que o nosso conhecimento era apenas elementar.
Era, de fato, um brilhante pensador e imbatível esgrimista. Deixou-me, entretanto, com a frustração de haver insistido e nunca ter conseguido publicar nada de sua lavra. Preferia a verbalização às escrituras. Cheguei até mesmo a presenteá-lo com um micro gravador para realizar o projeto e – imagino – cada vez que o via deve ter sorrido e dito a si mesmo: ”Pode esperar sentado meu amigo”.
E, não é pra me gabar, mas eu era titular de know-how imbatível: publiquei Ivan Maciel, um dos mais escorreitos e percucientes ensaístas do nosso Estado, usuário da palavra como o cirurgião de um bisturi, obsessivamente perfeccionista e por isso mesmo, até a data em que editei uma sua conferência na coleção “Pretexto”, inédito. E, cheguei às culminâncias da glória, ao editar o único livro do Professor Múcio Ribeiro Dantas, jurista na melhor compreensão desse termo, com a cumplicidade do seu filho, Marcelo Navarro,.
Mas mordi o pó da derrota em relação a Jales, um belo construtor de frases, fulgurante arquiteto e mestre de obras do pensamento filosófico do direito.
A sua figura e o seu modo intelectual, não sei por que, lembrava-me os personagens de Voltaire, de Rabelais, ou de Balzac. Tendente a Voltaire, a bem da verdade. Jales estudou alguns anos em Paris e, talvez por isso, arrisco-me a deduzir, tinha um ar gaulês. Era de pele, cabelos e olhos muito claros, o nariz afilado, aquilino, diria quase pontudo, que parecia antecipar-se à sua chegada, e como que substituía o dedo em riste, sendo talvez o seu mais veemente instrumento de libelo contra a estupidez humana. Pelo menos, é essa a minha percepção imaginativa, construtora de tipos, que transcende á mera captação dos sentidos.
Em certas ocasiões, achava-o parecido com os faunos que conheci das estampas dos velhos livros europeus: baixinho, rotundo, rosado, cabelos desalinhados, expressão alternando entre a “nonchalance” e uma seriedade mutante, típica do sardônico. E o nariz, ali, acusador, que nem uma peixeira desembainhada, ou a espada de Dâmocles.
Leal, determinado, solidário, não transigia em questões de princípio. Era extremado nas suas afeiçoes e nos seus desafetos. Não era morno, nem “murista”. Dizia o que pensava sem ofensas diretas, aguilhoando os medíocres e pretensiosos de modo sutil, com extrema presença de espírito.
Os desafetos os temiam dado à sua verve, ao modo de construir o picaresco com inteligência e propriedade.
Destaco três episódios dessa sua veia satírica.
A IGNORÂNCIA INVENCÍVEL
Um dos nossos concorria a um cargo relevante e fazíamos uma campanha com poucas chances de vitória, dado o respaldo de um concorrente, sempre favorecido por certo grupo político, então dominante, mercê do seu vínculo com os líderes do golpe de 64.
O competidor afortunado conduzia-se como pessoa desinteressada, um abnegado servidor do seu grupo que “aceitava os desafios e os sacrifícios que lhe eram impostos”, eufemismo vigente nas composições políticas de antigamente. Era um bom homem, de aparência simplória, mas um sertanejo tão cheio de “mineirices” que já havia sido tudo o que “não” quis ser.
Jales passou alguns dias recolhido em meditações. Concluído o período de maturação, acompanhou-nos para almoçar e, chegando ao restaurante, pigarreou e anunciou que havia descoberto o segredo do nosso adversário: ele era um favorecido por Deus, “sem querê-lo”, como era da sua natureza.
E se apressou a explicar, valendo-se do seu conhecimento de teologia (Havia sido irmão Marista): “É o seguinte. O que acontece com certas criaturas, como os silvícolas, quando cometem transgressões evangélicas? Devem ser condenados, seguindo a linha do nosso ordenamento jurídico segundo a qual ninguém desconhece a lei, mesmo que a desconheça? No caso da religião, essa ficção não pode ser aceita porque as escrituras devem ser, de fato, conhecidas. Logo, quem desconhece a palavra de Deus será salvo por um enunciado teológico conhecido como “Ignorância Invencível”. Ou seja, o pecador será salvo por sua ignorância – tal como os pobres de espírito.
Olhou-nos significativamente e arrematou: “Esse é o caso do nosso competidor. Vem sendo favorecido pela boa vontade divina, até agora, por ignorância invencível”
Nada mais foi dito , nem lhe foi perguntado.
PROIBIDO DE EXERCER OFÍCIO JURÍDICO
De outra feita, foi procurado por um estudante de direito, pessoa conhecida na cidade, de família ilustre – o pai era político e abastado agropecuarista. O aluno havia excedido o número de faltas permitidas e, portanto, estava reprovado na disciplina que Jales ensinava – Direito Constitucional .
O reprovado pediu, suplicou, chorou e Jales irredutível. Afinal, ele estava diante de um caso exemplar para reverter a sua própria tese, segundo a qual estudante de direito para ser reprovado teria que ter um pistolão, tal a facilidade oferecida pela estrutura acadêmica e mesmo pela tolerância dos professores desse curso.
Depois de algum tempo de lamúrias e firmezas – o rapaz já de joelhos e Jales ainda inamovível – o professor fez-lhe uma proposta: abonaria as faltas desde que o relapso estudante firmasse um documento obrigando-se a jamais exercer qualquer ofício que requeresse compulsoriamente a graduação jurídica. O rapaz prometeu. Jales então firmou, ali mesmo, o documento.
te hoje o rapaz vem mantendo a sua promessa, não sei se por devoção ao compromisso firmado, ou por indigência mesmo de conhecimentos jurídicos. Em qualquer das hipóteses, Jales contribuiu para a melhoria do nível dos profissionais do direito
KARL POPPER
Éramos um pequeno grupo de amigos mais chegados e nos reuníamos sempre que possível. Nossa maior diversão era provocar uns aos outros, com estórias que nós mesmos criávamos, deixando o passageiro da berlinda em má situação.
Havia um de nós que era solteiro e gabava-se de andar acompanhado de muitas mulheres. Jales assegurava que aquele que andava com mais de uma mulher, deixava de ser “gostoso” e passava à categoria de “gastoso”.
Pois bem. Num certo dia das tais reuniões, Jales encarou o nosso amigo “gastoso” e lhe disse que havia estado com fulana de tal e que ela lhe havia dito que “ficara” com ele. O rapaz deu-se por muito satisfeito com o relato, porque confirmava a sua aventura amorosa e o conceito de garanhão. Então, incentivou Jales: “Ela contou alguma coisa sobre o nosso encontro”?
Jales bebericou o cálice de vinho, degustou o líquido, olhou calmamente ao redor e, ainda verificando a condição do tempo respondeu: “Perguntou-me quem danado era Calpope. Disse que você passou a noite inteira falando desse tal Calpope que não fizeram mais nada. Ela cansou de tanta conversa fiada e terminou dormindo.
Por acaso o nosso jovem amigo tinha admiração pelo filósofo austríaco Karl Popper, tematizador da ciência.
SEU MANUEL
Jales tinha uma fazenda em Touros, administrada por um seu compadre chamado Manoel. Não sei se o administrador era mesmo um simplório, ou se Jales criou mais um personagem para a sua infinita galeria de tipos.
Lembro-me de dois “causos” em que o compadre Manoel era a figura central da narrativa.
Jales mandara construir uma casa confortável e a presenteara a Manoel. Alguns dias depois de ocupar a nova residência, o administrador telefonou para o patrão: “Doutor Jales, não pense que eu sou ingrato e que estou desfazendo do seu presente, não. Mas quero sua permissão para vender a casa nova e comprar outra.” Jales perguntou por que. “Porque quero uma casa com uma árvore em frente pra mode dar sombra’. Ao que Jales respondeu: “Plante uma árvore, homem de Deus.”
Jales procura saber como anda a saúde do empregado, às voltas com uma gripe fortíssima:
“Estou quase bom, Doutor Jales, tomei um garrafada das boas e só estou me queixando de uma moleza no corpo, tossindo que nem caipora e com uma catarrada danada no peito. O resto ´tá tudo bem.
Jales: “Me mande uma garrafada dessas que quero dar de presente a um inimigo que está com pneumonia”.
Os estudantes de direito da Farn lhe prestaram uma homenagem ainda em vida: fizeram-no patrono do seu centro acadêmico. Foi a única homenagem que recebeu e, segundo o que sei da sua ótica, o suficiente para gratificar-lhe.
Jales tem uma filha, que mora em João Pessoa e deixa viúva Nícia, sua fiel companheira de vivências afetivas e profissionais.
Quanto a nós, ficamos sem Aristóteles e Platão, Montesquieu, Rousseau, John Locke, Voltaire e Kelsen, sem dialética, sem companhia para a silenciosa audiência de Adagios, sobremodo o de Albinoni, e sem prumo, sem um amigo que nos valia nas alegrias, principalmente, e no conforto solidário nas nossas dificuldades.
Mas, alenta-nos a certeza de que ele vagueia, noutro plano dimensional, pelos amplos e bem cuidados jardins do mosteiro, em jornadas peripatéticas, formando a consciência missionária dos embaixadores da evolução planetária.


Pedro Simões – Ex-Professor de Direito, advogado, e escritor_________________________