sábado, 14 de julho de 2012

DE VOLTA PRA O ACONCHEGO - II - Última parte *
Ormuz Barbalho Simonetti *

Seguiu a cavalgada/carreata estrada afora. No carro de som que fazia parte do cortejo, podíamos ouvir cantigas de vaquejada: “Minha mãe teve dois filhos, fruto de amor e paixão. Brincando crescemos jutos às margens do Riachão. O destino separou, ele foi ser um doutor e eu fiquei pra ser pinhão”. Pouco antes de chegar à fazenda Lagoa do Cajá, aconteceu um pequeno acidente. Uma das cavalheiras foi atirada ao chão, quando sua montaria desequilibrou-se ao pisar em um buraco. Nada de grave, apenas um susto. Nessas cavalgadas, não raro acontece pequenos incidentes o que já é comum nesses eventos. Na fazenda Lagoa do Cajá, Marlene nos esperava para o almoço. O prato principal seria um “porco churrascado” acompanhado de uma “favada”. Já havia experimentado o feijão fava de diversas maneiras, porém jamais tinha comido uma fava com aquele sabor. Preparada à base de carne de charque, paio, lingüiça calabresa, bucho bovino, mocotó, muito tempero e a habilidade da cozinheira, logo transforma aquele rústico cereal, muito apreciado no sertão nordestino, em um verdadeiro manjar dos deuses. Em dado momento a tradição se fez presente com “Neguinho Aboiador” tirado versos com os participantes, às vezes arrancava risos e aplausos. É bonito e sonoro ouvir o poeta-cantador, em preservação a uma das mais puras e autênticas manifestações culturais do nordeste do país. O escritor José de Alencar, em seu livro O Sertanejo, diz do ritual do aboio. “Não se distinguem palavras na canção do boiadeiro; nem ele as articula, pois fala do seu gado, com essa linguagem do coração que enternece os animais e os cativa”. Por volta das 3 horas da tarde depois de muito forró, cachaça, porco churrascado e a inesquecível favada, partimos para a mais famosa e antiga das fazendas da região: a Fazenda Lagoa Nova. Assim que atravessamos a porteira, logo me deparo com aquela paisagem já bem conhecida de outrora. A visão da lagoa que se debruça em frente à casa grande, cheia de marrecas, galinhas d’água, jaçanãs e mergulhões, nadando tranqüilos naquele espelho d’água que refletia as nuvens muito brancas, em contraste com o lindo azul turquesa de suas águas. Parei o carro por alguns instantes para melhor desfrutar daquela beleza singular. O casarão construído em taipa e com mais de 100 anos de existência, encontra-se em bom estado de conservação. Fomos recebidos por tia Julia, viúva de Paulo Barbalho que herdou de seu saudoso marido o dom de boa anfitriã. Até os dias de hoje nunca conheci um pessoa que se igualasse a Paulo Barbalho no trato amigo e acolhedor dos que tiveram a sorte de baterem á sua porta. A grande maioria dos seus correligionários são testemunha dessas suas qualidades, pois muito se beneficiaram de sua arte de bem receber, além da fiel amizade que sempre dedicou a todos, lamentavelmente, nem sempre foi correspondida. De Lagoa Nova a caravana dirigiu-se para a fazenda Santa Terezinha, cujo proprietário é outro primo, Honório Barbalho. Ao chegar já encontramos a fazenda com muitos convidados vindos de Goianinha. O prato principal oferecido aos que chegavam era um delicioso queijo de manteiga, que acabara de sair do fogão à lenha. Pedi licença ao dono da casa para cumprimentar a queijeira. Dona Délia exímia na sua arte, desde pequena dedica-se a essa atividade aprendida com seus pais. Infelizmente não houve tempo para comer o que mais aprecio na confecção do queijo de manteiga: a raspa do taxo. A mistura feita com migalhas de queijo que ficam presas no fundo da panela, com farinha de mandioca e um pouco de manteiga da terra, também conhecida como manteiga de garrafa, por ter sua comercialização feita em garrafas, se constitui em uma das maravilhas da gastronomia sertaneja. A próxima e última parada foi na fazenda Jacumirim, de propriedade de Edinho, amigo e parceiro dos organizadores. Não compareci vencido pelo cansaço. Retornei para a fazenda Lagoa do Cajá onde iria pernoitar. Aguardaria o retorno dos participantes, pois lá estava prevista a finalização do evento, com um forró pé de serra. A festança varou a noite com muita alegria, churrasco e a indispensável e boa cachaça. Pela manhã acordei com o canto melodioso dos pássaros que saudava o milagre do amanhecer. Ao lado da casa, três grandes pés de algaroba servem de refugio aos pássaros que chegam para dormir. Bem-te-vis, sabiás, galos de campina, sanhaços, os saltitantes xorrós, majestosas rolinhas, golinhas e canários, exibem-se com seus gorjeios melódicos. Até um casal de casaca-de-couro, pássaro que há anos não via, também marcou sua presença naquela benfazeja manhã. Voando alto e ligeiro, vez por outra, ouvia o canto dos verdes-linho, pássaros pequenos e ágeis da família dos periquitos, também conhecidos na região pelo prosaico nome de “tapacu”, que tem por hábito escolher o oco das árvores ou velhos cupinzeiros para nidificar. No pátio em frente à casa grande, o tetéu se exibia com vôos rasantes e seu canto estridente. Também podíamos ouvir, mesmo sem vê-los, o piado dos nhambus, ave muito arisca e com grande poder de mimetismo com o ambiente natural, proteção que lhe garante a difícil sobrevivência. A garoa caída durante a madrugada fez aquelas terras se revestirem de esperança e de vida, no eterno milagre do desabrochar da natureza. Durante a madrugada tive ainda a oportunidade de ouvir o piado agudo das marrecas-viuvinhas, também conhecidas como irerês, que voando por cima da casa grande, se deslocava a procura de novas aguadas. Do curral, situado ao lado da casa, chegava aos nossos ouvidos o mugido dolente do gado sendo separado para a ordenha feita ainda de maneira tradicional. O cheiro característico do curral misturado ao orvalho da manhã levou-me a recordas passagens de minha infância e adolescência vividas naquelas mesmas terras, onde hoje me encontrava. Todos nós guardamos alguns aromas em nossas mentes. Esses aromas, que fazem parte da nossa memória olfativa, são também chamados de Perfume da Memória. Há quem defenda a tese, de que nunca compramos um alimento ou artigo de perfumaria, sem antes sentir o seu cheiro. O bezerro atados a pé da vaca por um arreador - pequena peça de corda- esforça-se para alcançar suas tetas, enquanto o vaqueiro com movimentos ágeis e cadenciados retira delas o leite quentinho e cheiroso e de sabor inigualável. Tomamos alguns copos. Uma delícia! Infelizmente a grande maioria dos habitantes urbanos, jamais irão sentir o prazer de tomar um copo de leite ao pé da vaca. Felizes aqueles que têm a oportunidade de vivenciar momentos tão venturosos como esses, no dia em que, aceitando um convite, fiz uma nostálgica viagem, de volta ao meu aconchego.

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