terça-feira, 9 de outubro de 2012


O desenrolar do controle concentrado

Publicação TN: 07 de Outubro de 2012 


Marcelo Alves Dias de Souza - Procurador da República
Semana passada, a propósito da obra "A autobiografia de Hans Kelsen" (2012, publicada pela Forense Universitária), falei um pouco sobre o modelo europeu de controle de constitucionalidade, que tem como principal característica o fato de concentrar o poder/dever de afirmar a (in)constitucionalidade das leis (ou dos atos normativos em geral) no que se convencionou chamar de "Tribunal Constitucional". Disse que Kelsen foi, se não o criador, pelo menos o sistematizador teórico desse modelo de controle. E ele foi também, de certa forma, o operacionalizador, com a criação, pela a Constituição da Áustria de 1920, da Corte Constitucional daquele país, órgão do qual, como também disse, Kelsen foi membro por quase uma década.

Mas é fato que, no rastro da experiência austríaca, sugiram na Europa várias outras tentativas - algumas com muito sucesso - de implementação de um Tribunal Constitucional para fins de efetivo controle (concentrado) de constitucionalidade das leis. Em outras palavras, a ideia de uma Corte Constitucional, espalha-se, ao longo do século XX, por toda Europa, vindo bater, como de resto sempre ocorre, na nossa querida América Latina (incluindo o Brasil).

Ainda entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais - e aqui faço uso das lições de Dominique Rousseau (em "La justice constitutionnelle en Europe", 1998, que já mencionei neste espaço anteriormente) -, por exemplo, a Checoslováquia, com sua Constituição de 1920, caminhou no mesmo sentido de uma Corte à semelhança daquela que se desenvolvia na Áustria. Na Espanha, sob a Segunda República Espanhola, a Constituição de 1931 criou um Tribunal de garantias constitucionais. A Irlanda, com a Constituição de 1937, fez funcionar um complexo controle de constitucionalidade, que contava com a participação das denominadas Corte Suprema e Alta Corte.

E o desenrolar desse modelo de controle de constitucionalidade, como um produto das grandes mudanças que o século passado trouxe na história e na política, não parou, como explica Dominique Rousseau em trecho de sua obra em francês que aqui traduzo livremente: "O século XIX foi o dos Parlamentos, o XX é o século da justiça constitucional, como costuma dizer o professor Mauro Cappelletti. É verdade: que o estabelecimento de uma corte constitucional é, depois de 1945, um elemento obrigatório em todas as constituições modernas com o mesmo status das assembleias parlamentares, de um governo e de um chefe de Estado; que os países que descobrem a democracia, Portugal em 1974, Espanha em 1975, a Polônia, Croácia, Eslovênia, Eslováquia, República Checa, Hungria, Bulgária, Romênia em 1990, apressam-se em inscrever, em suas novas constituições, o controle de constitucionalidade das leis; que os países hostis por tradição política a toda forma de controle jurisdicional das leis descobrem, como a França em 1958 e, sobretudo, em 1971, o 'charme' misterioso da esfinge que está afixada sobre a porta de entrada do Conselho Constitucional. E, na Europa, não resta mais que o Reino Unido, os Países Baixos e, em certa medida, os Estados Escandinavos a não terem sucumbido à justiça constitucional".

Lembremos que o sistema de controle de constitucionalidade "criado" na Áustria, que se espalhou pela Europa Ocidental e, mais recentemente, pela Europa Central, chamado por uns de "Jurisdição Constitucional Europeia", é bem diverso daquele surgido com o caso Marbury v. Madison (1803), conhecido como modelo americano ou difuso, no qual o poder/dever de afirmar a (in)constitucionalidade de leis é dado a todos os juízes e tribunais. Aliás, um dia vou contar aqui a história de Marbury v. Madison, com os papéis exercidos pelo Chief Justice John Marshall (1755-1835) e pelos Presidentes americanos John Adams (1735-1826), Thomas Jeferson (1743-1826) e James Madison (1751-1836) no imbróglio. E com a minha interpretação. Prometo.

As peculiaridades da "Jurisdição Constitucional Europeia" devem-se ao fato de que ela tem uma matriz histórica independente. Primeiramente, como já dito, o modelo em si - ao contrário do americano, resultado da "prática" jurisdicional no silêncio dos textos - é, em larga medida, fruto do trabalho teórico do grande jurista que foi Kelsen. Em segundo lugar, a jurisdição constitucional europeia, ao contrário da americana, tem o seu desabrochar apenas no século XX, não sendo algo que se possa dizer já completamente arraigado na cultura desse continente. Basta lembrar o exemplo da Inglaterra, onde, ao invés de vigorar o princípio da supremacia da Constituição como conhecemos, dada a ausência de constituição escrita (leia-se: posta em um único documento), impera o princípio da supremacia do Parlamento. Em terceiro lugar, a jurisdição constitucional na Europa é um produto das grandes mudanças do século XX - produto recente, portanto, para a longa história que esse continente já tem - e é, sobretudo, em qualquer de suas fases, uma resposta aos regimes ditatoriais passados e uma barreira à instituição de futuros regimes do mesmo tipo.

Mas, por falar na Inglaterra, lá as coisas estão mudando. O King's College London, onde faço doutorado, por exemplo, foi encarregado pelo Comitê de Reforma Política e Constitucional da Casa dos Comuns (a mais importante das duas casas do Parlamento inglês) de elaborar um estudo que servirá como base para uma consulta nacional sobre a adoção de uma constituição escrita para o Reino Unido. Com uma constituição escrita, teremos o princípio da supremacia da Constituição, com este princípio, necessariamente, um controle de constitucionalidade.

Ei, será que eles aceitam um pitaco meu nisso tudo?

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