domingo, 11 de novembro de 2012


POESIA RURAL

 Poema do Milho
Autora : Cora Coralina 
Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas, pseudônimo de Cora Coralina, começou a escrever poemas na adolescência. Porém, publicou seu primeiro livro somente ao 76 anos. Poema do Milho é um dos poemas deste seu primeiro livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. A beleza dos versos de Cora Coralina está em expressar as coisas simples e corriqueiras do cotidiano com palavras sabiamente escolhidas. Em Poema do Milho a autora revela, com expressiva naturalidade, o ritual do plantio e da colheita vivido pelo povo da roça. Milho.../ Punhado plantado nos quintais./ Talhões fechados pelas roças. (...) Milho verde. Milho seco. Bem granado, cor de ouro. (...) Milho quebrado, debulhado/ na festa das colheitas anuais. Seus versos, de uma simplicidade marcante, aliada a uma profunda experiência existencial, trazem à tona a possibilidade de refletir sobre questões sociais, entre elas, o uso da terra.
 Variedades de milho
Oração do Milho

Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso, nasce e cresce na terra descuidada. Ponho folhas e haste e se me ajudares Senhor, mesmo planta de acaso, solitária, dou espigas e devolvo em muitos grãos, o grão perdido inicial, salvo por milagre, que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo. E de mim, não se faz o pão alvo, universal.
O Justo não me consagrou Pão da Vida, nem lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial dos que trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre. Alimento de rústicos e animais do jugo.
Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustão do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante. Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a vida em terra estranha.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
Sou o carcarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal, agradecida a Vós, Senhor, que me fizeste necessária e humilde
SOU O MILHO

O Meu Carro de Boi...


No meio da estrada o carro se ia
e o pó levantava que de longe se via.
O par de bois, forte, da raça Junqueira,
puxava o estrado da prancha, pesado.
O Carreiro lidava, servindo de guia,
andando na frente e o grito se ouvia:
“Estrela, danado... Anda Malhado!”.
Cada boi se firmava na canga com força
pra romper o picoto da curva da estrada...

No roçado de milho a safra colhia
e na fartura de grãos o balaio enchia,
mas na mão de menino os calos eu via.
Com esforço da lida a sede chegava
e na prancha do carro com a carga aprumada,
ligeiro eu pulava e pra cima subia.
Na volta pra casa de novo se ouvia
o grito já rouco servindo de guia,
tocando a frente ao riacho rumavam
os bois já com sede, com a pressa puxavam
o carro pesado que pela trilha descia.
A comitiva cansada na trilha seguia,
depois de um tempo o riacho se via
e no vau finalmente a gente rompia.
Com a água tão clara a sede matava,
sentindo no peito uma graça alcançada
e depois do regalo findando o descanso,
pela trilha de novo a gente se ia...
No carro de boi sentado e cansado
eu olhava o horizonte e a alegria sentia.

Desses dias infantes eu lembro saudoso
do som da pisada no meio na estrada,
do suor do Malhado e do chifre envergado,
do pelo estampado e luzido do Estrela,
com olho fechado do esforço danado
ao longo da estrada que o bicho fazia,
levando a carga que tanto valia.
Dos muitos cantões que ia e se vinha,
ouvia o lamento no meio do nada
que sem sofrimento a roda fazia...
Era um canto velado, sempre aguçado,
da roda azeitada no som que trazia
a carga pesada, pro sustento do dia.
© 2011 Luiz Alfredo Carvalho de Barros
Poema publicado no OverMundo em 23/03/2011

A poesia rural de Zila Mamede


O arado, de Zila Mamede, publicado em 1959, é o terceiro livro da autora. É também prefaciado por Luís da Câmara Cascudo que dele diz: Todos os poemas nasceram no chão sagrado, com chuva do Céu e suor dos rostos vigilantes, surgidos na inspiração provocadora de uma inegável vivência emocional.

O estilo mamedino é marcado pela poesia de presentificação das memórias da infância. Sua linguagem é marcada por vocábulos típicos da realidade do Nordeste, ligando o homem ao campo. Zila Mamede compõe uma representação do Nordeste a partir da recriação de imagens de sua infância, através de uma rígida engenharia da palavra, buscando prazerosamente a exata palavra para compor o poema, numa espécie de ritual de aragem (pelo arado-poesia) da cultura nordestina.

Dos vinte poemas que compõem o livro, sete são escritos na forma de soneto, cinco são tercetos, um é quarteto e os demais são elaborados em estrofes irregulares, com predominância de versos livres.

Nesse livro, através do processo da rememoração, Zila Mamede traz para seus textos poéticos as lembranças de menina sertaneja entrelaçadas pela sua vida de "moça da cidade".


ARADO

Arado cultivadeira
rompe veios, morde chão
ai uns olhos afiados
rasgando meu coração.

Arado dentes enxadas
lavancando capoeiras
Mil prometimentos, juras
faladas, reverdadeiras?

Arado ara picoteira
sega relha amanhamento,
me desata desse amor
ternura torturamento.


O AÇUDE

O poema "Açude", por exemplo, vai se construir a partir de uma velha parede ponte imitando os dois barrancos entre chão e chão. A parede implica limites e divide chão e chão. Os dois chãos podem representar as experiências vivenciadas pela poeta: um, sua terra natal; o outro, a vida urbana. No meio das duas experiências, a parede, que divide e controla, e que bem poderia ser lida como signo de um coração dividido entre os dois espaços: o rural e o urbano. Vejamos o soneto:

O açude

Velha parede ponte limitando
os dois barrancos entre chão e chão.
Ao passadiço (em que montavam luas,
xexéus milipousavam no mourão)

a represança vinha da montante
em balde concha. Sobre a levação
do sangradouro retesou-se tempo
de quando as águas, nos rasgando a mão.

Desciam na revência, verdivida
amarelando cheiro de melão:
eram celeiros, peixes nos maretas

e em nós era ternura, era canção.
Sobras do antigo na menina extinta:
redorme na vazante a solidão.

O passadiço pode significar a passagem de um tipo de vida a outro, já que na praticidade da vida, o mesmo permite que as pessoas possam fazer uma travessia por cima de uma cerca, ou seja: possam vencer barreiras, metaforicamente falando.

A represança é a represa que segura as águas e balde concha, o medidor da profundidade. Trocando em miúdos: por mais que o passadiço permita a passagem da narradora de um lugar a outro (do sertão à cidade), ela sente-se presa ao lugar de origem. Todos esses fatos são enunciados como sobras de um passado distante.

É a poeta no presente, sentindo-se presa às origens, revelando que as lembranças da infância permanecem vivas na mulher adulta, ainda cheia de saudades e sentindo-se só, como mostram os dois últimos versos do poema:

Velha parede ponte limitando
os dois barrancos entre chão e chão.


A linguagem é cristalina e se estrutura a partir dos signos açude, sangradouro e balde, apontando para a possibilidade de resgate de vivências no sertão. A poeta bebeu das águas também cristalinas de Nova Palmeira, e delas não pôde mais esquecer.

Percebe-se que as imagens do sertão utilizadas nos poemas de O Arado passam por um processo tão intenso de elaboração, que a terra, em alguns momentos, deixa de ser tema e passa a personagem, como nos exemplos que seguem:

... Sofrida pelo arado
a terra inova-se...
 ("Moenda")

...
nervuras duma terra que desperta
alucinadamente a fecundar-se...
("A Apanha")


A terra agora não será mais a da infância, mas a da mocidade, presente no soneto "Rua (Trairi)". Este poema, aparentemente deslocado em relação aos outros do livro, cumpre seu papel de chamar atenção para os dois tempos da vida/poesia de Zila Mamede: a terra (o passado da poeta vivenciado no sertão) e a cidade representada pelo sal (o presente/momento da elaboração de sua poesia).

Nos cubos desse sal que me encarcera
(pedra, silêncios, picaretas, luas,
anoitecidos braços na paisagem)
a duna antiga faz-se pavimento.

Meu chão se muda em novos alicerces,
sob as pedreiras rasgam-se meus passos;
e a velha grama (pasto de lirismo)
afoga-se nos sulcos das enxadas,
nas ânsias do caminho vertical.
Ao sono das areias abandonam-se
nesta rua vividos fantasmas

de seus rios-meninos que descalços
apascentavam lamas e enxurradas.
Meu chão de agora: a rua está calçada.


Este poema faz parte das recordações do tempo juvenil, pois a referida rua era o local onde Zila morou quando mocinha, recém-chegada do sertão de Currais Novos/RN, até a época em que escreveu O Arado. Não é, portanto, em vão que ela constrói o poema com essa temática. São sentimentos da jovem/poeta presentificando-se no texto, através da voz memorialística.

A cidade (Natal) é apresentada pela palavra sal, por se tratar de litoral, e é esse sal que encarcera a poeta. A cidade, lugar almejado anteriormente, não vai significar a liberdade tão desejada. O sal remete à penitência, misticamente falando, e é usado no batismo do cristão. Na imagem construída no poema, ele encarcera a narradora e a penitencia na medida em que a afasta da paisagem de origem, fonte de suas lembranças.

No decorrer da leitura dos poemas de O Arado, observa-se que a fertilização da terra e do texto são uma constante nos mesmos. Em "Rua (Trairi)" ocorre o oposto, pois o sal pode opor-se à fertilização. Nesse caso, a terra salgada pode significar, também, terra árida, endurecida. Um costume antigo e por demais conhecido em tempo de guerra, era jogar sal nas terras das cidades destruídas para tornar o solo sempre estéril.


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