quarta-feira, 27 de março de 2013

Quarta Feira de Trevas - a traição

A traição de Judas – uma história mal contada

Paulo da Silva Neto Sobrinho
“Afaste-se da boca enganosa e fique longe dos lábios falsos” (Pv 4, 24)

Introdução

É interessante como alguns temas bíblicos não resistem a uma análise mais profunda. Vários deles, que já tratamos em outros textos, nos levam a uma certeza que muitos trechos constantes da Bíblia trata-se de uma deliberada, mas sutil, montagem para se chegar a um objetivo previamente traçado. Daí, muitos textos foram amoldados a esse objetivo, passando por cima da verdade histórica que deveria conter tais escritos.
Muitas pessoas se chocam com atitudes como essa, a de uma análise crítica. Entretanto, não abrimos mão de fazer uso da inteligência com a qual nos dotou o Criador. Nós seres humanos racionais, que efetivamente somos, temos que usar esse dom, pois, não usá-la é abdicar da única capacidade que nos difere dos animais, por isso, acreditamos que só ofendemos a Deus, quando não utilizamos a nossa inteligência plenamente.
Reconhecemos, entretanto, ser muito difícil a inúmeras pessoas, principalmente as que não pesquisam, abandonar conhecimentos adquiridos, especialmente quando foram passados como verdades divinas sob coação ideológica. Ou seja, o simples questionamento da veracidade das mesmas já era, por si só, considerado como grave ofensa à divindade. Essa possibilidade de heresia acaba gerando um bloqueio mental em função do medo do conseqüente castigo por esse tipo de pecado. Assim, aceitamos sem o mínimo questionamento o que nos foi imposto como verdade absoluta. Com o tempo, passamos a defender idéias que nunca analisamos ou criticamos, como se nossas fossem.
O assunto que iremos tratar, desta vez, está relacionado a uma suposta traição a Jesus, que teria sido realizada por Judas Iscariotes, um de seus discípulos. Inclusive, tudo que consta na Bíblia sobre ele está somente nas passagens que iremos ver a seguir.

Análise das narrativas

Em Lucas 22,3-6, está escrito que, após satanás ter entrado em Judas, ele foi procurar os sacerdotes para ver de que maneira entregaria Jesus. Os sacerdotes ficaram tão satisfeitos com isso que combinaram em dar-lhe dinheiro, uma vez que eles desejavam, de há muito, eliminar esse herético. Tal acontecimento se deu, na versão de Lucas, antes da festa dos Ázimos, evidentemente, antes da ceia de páscoa, cujo prato principal eram os cordeiros que matavam especificamente para essa finalidade, entretanto, segundo João, esse fato se deu após a ceia (Jo 13, 26-29), apesar de que, um pouco antes, ele ter dito: “Enquanto ceavam, tendo já o diabo posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, que o traísse” (Jo 13,2), sendo, por conseguinte, omisso sobre qualquer combinação anterior entre Judas e os sacerdotes. Portanto, podemos verificar que há conflito entre as narrativas.
Quanto à questão dessa combinação com os sacerdotes, Mateus (26,15) diz que Judas pediu dinheiro para entregar-lhes Jesus, enquanto que Marcos (14,11) e Lucas (22, 5) afirmam que foram os sacerdotes é quem tomaram a iniciativa de retribuir ao discípulo, dando-lhe dinheiro como recompensa pelo seu ato ignominioso. Um bom observador irá perceber que, pelas suas narrativas, Mateus teve uma evidente preocupação, qual seja a de relacionar Jesus com as profecias, inclusive, muito mais que os outros Evangelistas. Daí ser ele o único que diz sobre o quanto Judas teria recebido, dando como certa a importância de trinta moedas de prata (Mt 26,15; 27,3). Essas passagens que falam disso são relacionadas a Zc 11,12-13, no pressuposto de que ela seja uma profecia, entretanto, os fatos ali narrados se referem ao próprio profeta Zacarias, não é, por conseguinte, uma revelação sobre algo que viesse a ocorrer no futuro.
Ao narrar os acontecimentos durante a ceia, Mateus relata que Jesus, ao responder aos discípulos sobre quem o iria trair, teria dito: “Quem vai me trair, é aquele que comigo põe a mão no prato. O Filho do Homem vai morrer, conforme a Escritura fala a respeito dele..." (Mt 26,23-24). Passagem relacionada ao Sl 41,10, onde Davi reclama sobre um amigo que o trai. O que nos leva a concluir que tal passagem não é uma profecia, assim, não poderia estar relacionada a Jesus, como querem os que buscam, nas Escrituras, apoio para seus dogmas. Davi foi traído por um amigo, seu próprio conselheiro, de nome Aquitofel, conforme narrativa em 2Sm 15,12.31. O final trágico da vida desse “amigo da onça” foi enforcar-se (2Sm17,23), por isso, querem, igualmente, atribuir esse mesmo destino a Judas, como iremos ver mais à frente.
Outra coisa que nos parece sem nenhum sentido, principalmente por tudo que Ele fez, é que Jesus tenha realmente se preocupado em delatar o seu traidor, conforme narra Jo 13,26, quando, para identificar quem o trairia, diz aos que o acompanhava, naquela ceia, que seria a quem desse um pão molhado, dito isso, imediatamente, entrega-o a Judas. Talvez a preocupação aqui seja buscar mais uma forma de relacionar tal episódio a uma suposta profecia sobre esse acontecimento.
Mateus (26,48) e Marcos (14,44) dizem que Judas havia combinado com os sacerdotes um sinal – o beijo – para que pudessem identificar quem era Jesus. Lucas, apesar de não relatar absolutamente nada sobre esse sinal, diz que Judas aproximando-se de Jesus o saúda com um beijo (Lc 22,47). Enquanto que João não fala de ter havido uma combinação de sinal, nem que Jesus teria dito algo a respeito e nem mesmo coloca Judas beijando a Jesus, já que, para ele, foi o Mestre que se adiantou aos guardas acompanhados de Judas se identificando a eles como sendo Jesus, o Nazareno, a quem procuravam (Jo 18,3-5). Fatos novamente conflitantes.
Nenhum outro evangelista, a não ser João, coloca Judas como sendo aquele que, entre os discípulos, cuidava da “bolsa” (Jo 13,29). Vai mais longe ainda, o acusa de ladrão (12,6). Como uma acusação grave dessa não foi feita por mais ninguém? Se Judas fosse realmente ladrão, por que motivo o deixaram tomando conta do dinheiro? Alguém colocaria um ladrão como seu administrador financeiro? Não seria, evidentemente, para colocar a honra desse discípulo em jogo, fórmula encontrada para se justificar que, por ser assim, ele não teria também nenhum escrúpulo em trair o seu próprio Mestre?
Não bastassem os que já encontramos, aparecem-nos agora mais dois evidentes conflitos.
O primeiro está relacionado à forma pela qual Judas deu cabo à sua vida, movido, segundo relata Mateus, por profundo remorso. Estranhamente ele é o único evangelista que fala disso, nenhum outro apresenta uma linha sequer sobre Judas ter se arrependido. Continuando seu relato Mateus diz que Judas enforcou-se (27, 5), entretanto em Atos (1,18) está se afirmando que ele “precipitando-se, caiu prostrado e arrebentou pelo meio, e todas as suas entranhas se derramaram”, mudando-se, desta maneira, a versão anterior a respeito de sua morte. Encontramos a seguinte explicação para esse passo: “Possivelmente a narração da morte de Judas enforcando-se, está inspirada na história da morte de Aquitofel (cf. 2Sm 17,23)” (Bíblia Sagrada Santuário, p. 1463). Conforme citamos anteriormente Aquitofel enforcou-se, mas querer daí, apenas por inspiração, atribuir a Judas uma morte semelhante é lamentável, pois os fatos bíblicos deveriam relatar fielmente o ocorrido, não como o autor quer que tenha acontecido, o que nos coloca diante de uma mera suposição.
O segundo diz respeito ao destino dado às moedas. Mateus menciona que Judas as teria devolvido, atirado-as dentro do santuário, que recolhidas pelos sacerdotes foram, por deliberação, destinadas à compra do campo do oleiro, para servir de cemitério aos estrangeiros (27,3-10). Citando que isso aconteceu para se cumprir o que dissera o profeta Jeremias. Mas essa história parece-nos mal contada, pois em Atos se diz que o próprio Judas teria comprado um campo (At 1,18), que até poderia ser esse do oleiro, mas de qualquer forma está em conflito com a versão anterior.
Na maioria das Bíblias em que consultamos, dizem que as profecias relacionadas a Mt 27,9: “Cumpriu-se, então, o que foi dito pelo profeta Jeremias: Tomaram as trinta moedas de prata,, preço do que foi avaliado, a quem certos filhos de Israel avaliaram e deram-nas pelo campo do oleiro, assim como me ordenou o Senhor”, seriam: Zc 11,12-13 e Jr 32,5-16, ou Jr 18,1-4 e 19,1-3, havendo, portanto, sérias dúvidas quanto à identificação da profecia especifica relacionada ao episódio. Como já falamos sobre a citação de Zacarias, fica-nos, por conseguinte, apenas as de Jeremias para dizermos alguma coisa. Em notas explicativas sobre elas encontramos que: “A citação é uma combinação artificial de Jr 32,6-9 e Zc 11,12-12” (Bíblia do Peregrino, p. 2386), isso deixa-nos diante da realidade de que, por se admitir que seja “uma combinação artificial”, estamos, sem dúvida, diante de mais uma tentativa de se relacionar acontecimentos no Novo Testamento com ocorrências registradas no Antigo Testamento tidas como se fossem verdadeiras profecias.
Quem tiver a curiosidade de consultar a passagem citada de Zacarias não encontrará nela nenhum aspecto de profecia, são apenas fatos relacionados àquele momento vivido por esse profeta. E quanto a Jeremias, não se encontra absolutamente nada que ele tenha comprado alguma coisa por trinta moedas. Sobre a compra de um terreno, sim, como podemos ver em 32,1-44, mas uma situação circunstancial, explicada da seguinte forma:
“À primeira vista se trata de um incidente: a compra e venda de um terreno segundo as normas e o procedimento da legislação judaica. O narrador se compraz em registrar todos os detalhes, mostrando que a lei foi estritamente cumprida e que o ato é juridicamente válido. O surpreendente dessa compra-e-venda é que se realiza às vésperas da catástrofe inevitável. Que sentido tem nesse momento comprar um terreno para que fique em poder da família? Tudo já está perdido. Mas o absurdo do ato é a chave do seu sentido. Para efeitos legais imediatos, a compra nada servirá; para efeitos proféticos, é admirável ato de esperança no futuro. É um oráculo em ação, Jeremias profetiza ao vivo: não só palavras, nem ação simbólica, mas ato real jurídico. Esse ato significa o futuro que ele antecipa: a jarra de barro onde se guarda o contrato é um penhor que Deus concede. Apesar do que está para acontecer, a terra continua sendo propriedade dos judaítas: a terra prometida aos patriarcas e possuída durante séculos...” (Bíblia do Peregrino, p. 1928).
Podemos ainda confirmar isso com a seguinte explicação: “A citação [Mt 27,9] é tirada na realidade de Zacarias (11,12-13). Mas, ele lembra também diversos versículos de Jeremias onde se faz menção do campo e do oleiro (32,6-6; 18,2-12)”. (Bíblia Ave Maria, p. 1319). Ressaltamos que a expressão “ela lembra”, é uma afirmativa que depõe contra o próprio texto que, positivamente, diz ser de Jeremias essa profecia.

Conclusão

Percebemos que as narrativas possuem diversos fatos conflitantes entre si, deixando-nos na convicção que tudo não passa de um ajuste dos textos para se chegar a um objetivo pré-determinado, conforme já falávamos, desde o início. Para se ter uma idéia mais exata sobre isso, colocaremos a passagem Mateus 27,1-26, que, para tornar a explicação mais fácil de ser entendida, iremos dividi-la em três partes:
I) 1-2: De manhã cedo, todos os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo convocaram um conselho contra Jesus, para o condenarem à morte. Eles o amarraram e o levaram, e o entregaram a Pilatos, o governador.
II) 3-10: Então Judas, o traidor, ao ver que Jesus fora condenado, sentiu remorso, e foi devolver as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e anciãos, dizendo: "Pequei, entregando à morte sangue inocente". Eles responderam: "E o que temos nós com isso? O problema é seu". Judas jogou as moedas no santuário, saiu, e foi enforcar-se. Recolhendo as moedas, os chefes dos sacerdotes disseram: "É contra a Lei colocá-las no tesouro do Templo, porque é preço de sangue". Então discutiram em conselho, e as deram em troca pelo Campo do Oleiro, para aí fazer o cemitério dos estrangeiros. É por isso que esse campo até hoje é chamado de "Campo de Sangue". Assim se cumpriu o que tinha dito o profeta Jeremias: "Eles pegaram as trinta moedas de prata - preço com que os israelitas o avaliaram - e as deram em troca pelo Campo do Oleiro, conforme o Senhor me ordenou".
III) 11-26: Jesus foi posto diante do governador, e este o interrogou: "Tu és o rei dos judeus?" Jesus declarou: "É você que está dizendo isso". E nada respondeu quando foi acusado pelos chefes dos sacerdotes e anciãos. Então Pilatos perguntou: "Não estás ouvindo de quanta coisa eles te acusam?" Mas Jesus não respondeu uma só palavra, e o governador ficou vivamente impressionado. Na festa da Páscoa, o governador costumava soltar o prisioneiro que a multidão quisesse...”
Para o que queremos colocar não é necessário citar toda a narrativa, assim omitimos o restante da seqüência dessa última (vv. 16-26), pois até aqui, no versículo 15, já encontramos o suficiente para entendermos e percebermos que os versículos de 3-10 nada têm a ver com o contexto geral daquilo relatado na passagem. Inclusive, no versículo 3 está dito que Judas viu que Jesus havia sido condenado, quando, no desenrolar do texto, esse fato ainda não havia acontecido, que só veio acontecer mais à frente. A quebra brusca na seqüência dessa narrativa, não deixou de ser percebida pelo tradutor da Bíblia do Peregrino, conforme nos explica:
“O episódio da morte de Judas interrompe estranhamente o curso do relato, como se a entrega de Jesus ao governador ultrapassasse suas previsões. Sabemos que a figura de Judas alimentou desde cedo fantasias legendárias. Lucas dá versão diferente (At 1,18-20). A morte violenta do perseguidor ou culpado é tema literário conhecido (p. ex. Absalão, 2Sm 18: Antíoco Epífanes, 2Mc9; em versão poética vários oráculos proféticos, p.ex. Is 14; Ez 28). Antes de morrer, Judas acrescenta seu testemunho sobre a inocência de Jesus. Confessa o pecado, mas desespera do perdão...” (pp. 2385-2386).
Isso vem confirmar todas as nossas suspeitas de que tudo foi um calculado arranjo visando ajustar os textos às conveniências dos interessados para que eles tivessem referências às suas idiossincrasias. E em relação ao assunto tratado, temos fortes suspeitas que vários outros trechos foram intercalados às narrativas bíblicas, para se amoldá-los ao propósito determinado. Podemos citar, como exemplo, Mt 26,14-16, 21-25, Mc 10,10-11; 14, 18-21, Lc 22,3-6, 21-23, para que você, caro leitor, faça uma análise mais aprofundada.
Ficamos a pensar como se sentiu e como ainda pode estar se sentido Judas sobre tudo quanto lhe imputaram como procedimento. O pobre coitado ainda é julgado e condenado, anos após anos, pelos ditos “cristãos”, que, com certeza, não cumprem: “Não julgueis os outros para não serdes julgados, porque com o julgamento com que julgardes, sereis julgados e com a medida que medirdes sereis medidos” (Mt 7,1-2). Não bastasse isso ainda é humilhado, malhado e, ao final, é espetacularmente “detonado”. Infelizmente esse nos parece ser o seu destino cruel, que se perpetua anualmente nas comemorações da Semana Santa realizadas por determinadas religiões cristãs tradicionais.

Bibliografia

  • Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
  • Bíblia do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2002.
  • Bíblia Sagrada - Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 2001.
  • Bíblia Sagrada. Aparecida, SP: Santuário,1984.
  • Bíblia Sagrada. Brasília, DF: SBB, 1969.
  • Bíblia Sagrada. São Paulo: Ave Maria, 1989.

_____
Fonte: Portal do Espírito

Nenhum comentário:

Postar um comentário