quinta-feira, 24 de julho de 2014

Justiça





O tribunal espanhol

Na semana passada, conversamos aqui sobre o Tribunal Constitucional de Portugal. Hoje, sem irmos muito longe, trataremos do Tribunal Constitucional da Espanha. Os países são vizinhos na Península Ibérica. O primeiro, por sinal, já esteve sob dominação do segundo à época dos reis “Filipes” de Espanha (a propósito desse período, chamado de “Siglo de Oro” espanhol, vide a minha crônica “Ordenações e Literatura Filipinas”). De trem ou carro, vai-se facilmente de Lisboa a Madrid. E você, caro leitor, se fizer a viagem, vai gostar. Eu garanto!

Bom, o modelo constitucional espanhol de controle concentrado, previsto pela Constituição de 1978, foi inspirado, segundo se diz, nos exemplos alemão, italiano e francês, apesar de ter incorporado também a via de exceção, sendo um dos modelos mais completos da Europa.

Em conformidade com o art. 159 da Constituição de 1978, possui a Espanha um Tribunal Constitucional composto de doze membros (denominados “Magistrados”), nomeados pelo Rei, sendo quatro por proposição da Câmara, quatro por proposição do Senado, dois por proposição do Governo e dois por proposição do Conselho Geral do Poder Judiciário, todos juristas de reconhecida competência e com mais de quinze anos de exercício profissional. Não são vitalícios, sendo o mandato de nove anos, renovada uma terça parte a cada triênio. O Tribunal atua em Plenária, em “Salas” (que são duas, compostas por seis magistrados cada) e em “Seções” (duas para para cada “Sala”, perfazendo um total de quatro). A Presidência do Tribunal é exercida por um dos seus membros em mandato de três anos, renovável uma vez.

Dentre as várias competências do Tribunal Constitucional, previstas no art. 161 da Constituição, sobreleva a de conhecer o recurso de inconstitucionalidade contra leis e disposições normativas com força de lei (letra “a” do referido artigo). É importante lembrar, já que isso é muito comum na Espanha, que a expressão “recurso”, no caso, quer significar o que, para nós, é denominado de ação.

De conformidade com a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (arts. 1º e 13), as suas decisões através do seu Pleno (não por suas “Salas”) no controle de constitucionalidade - aquilo que se denominou de “doutrina constitucional” (melhor seria chamar de “jurisprudência constitucional”, eu acho) - têm caráter vinculante geral. Como intérprete supremo da Constituição e legislador negativo, o Tribunal, pelo Pleno, ao apreciar a constitucionalidade de uma lei e declará-la inconstitucional, profere uma decisão que tem a eficácia idêntica à da lei que ele apreciou.

Ignacio de Otto (em “Derecho constitucional: sistema de fuentes”, publicado pela editora Ariel), expõe a questão detalhadamente: “A força vinculante desta doutrina do Tribunal Constitucional provém da própria posição do Tribunal, que sua Lei Orgânica define como ‘intérprete supremo da constituição’ (art. 1º), qualificação que não se encontra expressamente na Constituição, mas que resume de modo expressivo as funções constitucionais do próprio Tribunal, conforme sua interpretação prevalece sobre a que tenha sido feita pelo legislador e sobre qualquer outra. Por isso mesmo há que dizer que, a rigor, o único que cria jurisprudência neste sentido é o Tribunal em pleno, não suas Salas, pois a posição de intérprete supremo da Constituição corresponde aquele, porquanto pode impor sua interpretação à do legislador, função que é unicamente da competência do Pleno. Devido a isto é que a Lei Orgânica do Tribunal dispõe, em seu art. 13º, que ‘quando uma Sala considere necessário afastar-se, em qualquer ponto, da doutrina constitucional precedente estabelecida pelo tribunal, a questão será submetida à decisão do Pleno’”.

À semelhança do que ocorre no controle concentrado de constitucionalidade no Brasil, a “doutrina constitucional” do Tribunal espanhol, assim entendida como aquela emanada do Pleno da Corte, se impõe aos tribunais do país. A isto alude a “Ley Orgánica del Poder Judicial” (LOPJ), de 1985, em seu art. 5.1, ao afirmar que os juízes e tribunais, vinculados obviamente à Constituição, “interpretarão e aplicarão as leis e os regulamentos segundo os preceitos e princípios constitucionais, de acordo com a interpretação dos mesmos que resulte das resoluções ditadas pelo Tribunal Constitucional em qualquer tipo de processo”. Com essa afirmação, entretanto, a LOPJ espanhola parece ir além do que se defende no Brasil: em essência, ela equipara a “doutrina” do Tribunal Constitucional à própria Constituição no que se refere ao seu valor normativo para a jurisdição ordinária, pois sempre que exista “doutrina constitucional” sobre um preceito da Constituição os tribunais haverão de interpretar esse preceito segundo aquela (a “doutrina constitucional”).

Interessante, não?

E que tal dar um pulo lá, no Tribunal Constitucional espanhol, para aprender mais? Procure pelo número 6 da Rua Domenico Scarlatti, bem pertinho do campus da gigantesca Universidade Complutense, onde fica, por sua vez, a saudosa (para mim, pelo menos) Casa do Brasil em Madrid. Nesta, em precisando, você terá um bom apoio. Com certeza!

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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