O problema não é a charge, 

mas sim o fundamentalismo; 

Por Diogo Costa
Moralismo canalha culpa as vítimas e não os algozes

O caso do periódico francês Charlie Hebdo suscitou polêmicas mil nos quatro cantos do mundo.
Trata-se de uma publicação que existe desde a década de 70 na França e que sempre se caracterizou pelo humor corrosivo que fez em relação aos costumes tradicionais do país. Não poupavam a ninguém, nem mesmo Charles de Gaulle, que satirizaram em novembro de 1970, quando da morte do mesmo.
Se autodefinem como sendo parte da esquerda libertária e sempre defenderam Cuba, sempre criticaram o anti comunismo, Israel e a ocupação da Palestina, a extrema-direita da Frente Nacional da família Le Pen e todos os fundamentalismos religiosos. A charge do bacanal entre Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo é um clássico da sátira feita sobre o cristianismo.
Agora vamos ao caso concreto. Doze jornalistas e funcionários do pasquim foram assassinados por militantes do fundamentalismo islâmico. A justificativa, ou desculpa, foi a de que o Charlie "zombou" do Islã.
Esse caso fez aparecer no Brasil uma corrente de hipocrisia e de um moralismo abjeto e carola como há muito tempo não se via. Algumas pessoas chegaram ao ponto de passar a criticar a revista ao invés de criticar os assassinos. Algumas pessoas chegaram ao ponto de criticar as vítimas da chacina, que teriam "desrespeitado" a fé alheia e que, portanto, "sabiam do risco que estavam correndo".
Esse tipo de abordagem é absolutamente canalha. É uma abordagem sórdida e injustificável. Culpar as vítimas da chacina, e as charges que faziam (desde os anos 70), ao invés de culpar o fundamentalismo fascista da Al Qaeda e do Estado Islâmico beira à delinquência moral e intelectual. Vai contra todos os preceitos civilizatórios que a humanidade acumulou ao longo do tempo, em especial da Revolução Francesa para cá.
Desde quando se pode compactuar com a sacralização de distintas confissões religiosas, a ponto de torná-las incriticáveis?
Ora, os jornalistas eram franceses, estavam em seu país de origem e estavam exercendo a liberdade de expressão que aquele país confere aos seus compatriotas, da mesma maneira que a Carta de 88 confere aos brasileiros.
A sordidez carola que se verificou por aqui chegou ao ponto de dizer que a liberdade de expressão não é um direito absoluto! Isto é outra amoralidade terrificante. A liberdade de expressão na França e no Brasil não admite censura prévia nem licença, e isto é uma conquista civilizatória. Se alguém se sente ofendido por causa de uma publicação qualquer, tem como pedir reparação junto ao Poder Judiciário. O que ninguém pode é sair por aí metralhando outrem porque se sentiu ofendido!
Não há meia liberdade de expressão, que não se confunde com outros aspectos relativos à comunicação como a questão da propriedade cruzada dos meios e os oligopólios midiáticos.
O fundamentalismo canalha, seja ele islâmico, cristão ou judaico, quer ser o porta voz dessas respectivas religiões. Não são e nunca foram. A armadilha é levar em consideração o que grupos de vermes e ratos, como estes da Al Qaeda, dizem sobre o Islã. Eles não são os porta vozes dos bilhões de muçulmanos que existem nos cinco continentes. São apenas um grupo de terroristas facínoras que aterroriza e que mata principalmente os próprios muçulmanos, em especial os xiitas e os alauítas.
O mundo que emergiu no pós Revolução Francesa, e que acabou com as teocracias medievais, não admite que críticas ou sátiras não possam ser feitas de forma livre e desimpedida. Ceder aos apelos falsos de ratos e de vermes terroristas como estes que hoje estão a combater na Síria, é ceder ao pior obscurantismo que se possa imaginar.
O grande debate que deveria ser feito não é esse sobre a conveniência ou não das charges do Charlie Hebdo. Esse debate é ridículo e medieval. Imaginar por um segundo sequer que chargistas não possam se manifestar livremente é estar a um passo da barbárie totalitária e do fundamentalismo fascista.
A questão não é ser ou não ser Charlie. Mas sim a de saber se o Charlie e outras publicações tem ou não o direito de se expressar livremente. Ou será que teríamos talvez que voltar aos tempos onde censores ficavam nas portas das redações dizendo o que podia e o que não podia ser alvo de uma charge ou reportagem? Ou será que teríamos que voltar aos pérfidos tempos da censura prévia, para não desagradar aos ratos da Al Qaeda?
Outra questão importante é que os países do Ocidente tem responsabilidade indireta com relação a esses grupos terroristas muçulmanos. Desde a irrupção da "Primavera Árabe" que o Ocidente tem patrocinado direta ou indiretamente esses facínoras do Estado Islâmico e da Al Qaeda através da OTAN, dos EUA, da Turquia e da Arábia Saudita.
Utilizaram esses vermes mercenários para derrubar Muammar Kaddaffi na Líbia e o fizeram também na Síria, sem sucesso, para tentar derrubar Bashar Al Assad.
A Al Qaeda é velha conhecida dos EUA desde os tempos da guerra fria, quando foram treinados e armados pelos mesmos para combater a União Soviética no Afeganistão.
Esse debate tem passado em brancas nuvens e as populações europeias, em especial a da França, deveria cobrar de seus governantes o apoio que prestaram a esses grupos de vermes fundamentalistas que agora atacaram na terra de Napoleão Bonaparte.
No mais, é triste e revoltante ver que alguns setores da esquerda que espumam de indignação contra Bolsonaros, Felicianos, Macedos e Malafaias da vida aqui no Brasil, denunciando a perigosa infiltração fundamentalista no cotidiano de nosso país, tenham sido os primeiros a recriminar a libertária publicação francesa ao invés de recriminar o fundamentalismo canalha que insuflou o atentado.
O Charlie Hebdo tem todo o direito de fazer a sátira que quiser, tem todo o direito de se expressar, como sempre fez, contra o fundamentalismo muçulmano, cristão ou judeu. Tem todo o direito de expressar as suas críticas da maneira que quiser. Nada justifica o que aconteceu contra os 12 franceses.
Aliás, e para ver a que ponto chegou a loucura aqui no Brasil, chegaram mesmo a manipular uma charge para difamar o Charlie Hebdo. Circula pelas redes sociais uma charge da Charlie Hebdo, onde aparece a Ministra Christiane Taubira sendo retratada como um macaco. Essa charge nada mais é, e isto é omitido de forma abominável, do que uma crítica contra a revista Minute e a Frente Nacional, ambos da extrema-direita francesa. A revista Minute fez uma capa com a seguinte manchete: "Maligna como um macaco, Taubira recupera a banana". A ex candidata da Frente Nacional à prefeitura de Rethel, Anne-Sophie Leclère, fez uma montagem no facebook mostrando a ministra francesa ao lado de um macaco. Foi a partir daí que a Charlie Hebdo fez a sua própria charge com os seguintes dizeres: "Rassemblement Bleu Raciste". E com o símbolo da Frente Nacional.
Rassemblement Bleu Marine é a coalizão de extrema direita da qual faz parte a Frente Nacional de Marine Le Pen. Ou seja, a charge do Charlie Hebdo nada mais é que uma crítica contra a revista Minute, contra a Rassemblement Bleu e contra a Frente Nacional, chamando-os de racistas pelo que fizeram contra a Ministra Christiane Taubira. Aqui no Brasil, lamentavelmente um delinquentezinho surrupiou o título da charge do Charlie, escreveu frases imbecis e publicou, atribuindo o racismo à quem na verdade fez a denúncia contra os racistas da extrema-direita. Foi o que bastou para que outros imbecis, salivando por encontrar algo que justificasse os seus autos de fé contra o Charlie Hebdo, passassem a dizer que a publicação era racista!
A própria ministra Christiane Taubira, que jamais processou o Charlie, mas sim as publicações da extrema-direita e a Frente Nacional, em sua página no facebook, logo após o atentado, escreveu: "Charlie Hebdo, primeira linha de defesa e o último bastião da democracia, a liberdade de imprensa é inimiga do obscurantismo e da violência." Aqui no Brasil um delinquente alterou uma charge para caluniar o Charlie Hebdo e foi o que bastou para a turba linchadora compartilhar milhões de vezes uma das mais repugnantes mentiras de que se tem notícia, algo absolutamente lamentável.
Compactuar com essa tese sórdida de culpabilizar as vítimas é retroceder no mínimo uns 300 anos em matéria de direitos humanos. Compactuar com as chantagens do fundamentalismo, e de ratos que se utilizam da religião para espalhar o terror, é também uma capitulação injustificável.
Espero que o Charlie Hebdo siga fazendo o trabalho que sempre fez.

E espero que alguns setores da esquerda no Brasil recobrem o juízo a tempo. A tempo de compreender que os problemas não são essas ou aquelas charges mas sim o fundamentalismo fascista, seja ele de que religião for.