segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015




Encontramos, no arquivo virtual desta Academia, a crônica do nosso Patrono (de saudosa memória), e que levamos até vocês. Uma explosão de amor ao Ceará-Mirim.

O CEARÁ-MIRIM EM POSTAL MEMORIOSO
Pedro Simões Neto - Patrono da Academia
...
O tiroliroli e o tirolirolá de (de)trás-(d)os-montes, fez parelha com o bum bum bum d´Angola, e gostaram tanto um do outro que terminaram se amancebando nos canaviais e pariram pasteizinhos de Santa Clara, beijus e tapiocas, cocadas e vinhos de boa vindima e tome lundu, quadrilhas e umbigadas. E também a calidez e o sestro, a valentia e o rebolar sensual das ancas generosas das negras minas e dos frutos proibidos da casa grande com a senzala. O caldo de cana, a rapadura, o mel de engenho, o açúcar dito impropriamente bruto.
E as brincadeiras de roda, as estórias de trancoso das senhoras baronesas e a dos ancestrais pretos velhos contadas pelas mucamas. O seu povo, ai Jesus! gente devota de Nossa Senhora da Conceição, de uma morenice que nenhuma terra tem; quando não é na pele, é na alma inteirinha tingida pelas raízes atávicas.
Ah, Ceará-Mirim, Ceará-Mirim. Bendito os que nasceram nesse torrão de açúcar, com olhos de uma estranheza azul esverdeada porque lá o canavial e o céu criaram novos tons para essas cores; até mesmo os que os tem pretos ou castanhos, ficam com os olhos de maré, virando verde ou azul, furta-cores, ao sabor do sol sobre as marés.
Meu Ceará-Mirim memorioso, às vezes caduco, vidente e cego, generoso e unha de fome, solene e moleque, religioso e profano. Terra de tanta fartura de inteligência que deu ao Rio Grande do Norte e ao Brasil uma grosa de gente afamada pelos escritos, pelas músicas e pelos atos de civismo. É tão grande a fartura que já serviu de comida aos porcos e ainda teve sobra pra quem quisesse.
Mas tem um porém: o lá-em-cima e o lá embaixo das ladeiras vem sugestionando o povo. O velho e querido Bacuipe dos potiguares, sobe e desce que nem a sua topografia. Entre crises de desmilingue e garapas de silenciosa e fervorosa esperança, a cidade para no tempo, recolhe-se ao passado, esconde-se do futuro com medo do escuro.
Quando chega a esse ponto, não tem jeito que dê jeito, tem-se que ir aos tororós dos antanhos para arrancar do memorioso passado uma razão para seguir sendo. Por isso, de vez em quando ando pra trás, que nem caranguejo.
Tenho orgulho de ter bebido a água do Jericó e do Diamante, e endurecido a pele com a água salobra do Olheiro. Por isso que tenho couro grosso. Vivi sem encanamento nem saneamento, que era coisa de lombo de burro e de barris e de fossa com sumidouro.
De ter atravessado as noites tenebrosas sem luz elétrica, fugindo dos lobisomens, bestas-feras e homens da capa preta. O candeeiro e as lamparinas não ajudavam e até atrapalhavam com aquelas sombras virando imagens e se mexendo que nem almas penadas...
De ter morado na rua São João, num bangalôzinho danado de jeitoso que dava as costas ao cemitério, acordando todos os dias com a “baba dos defuntos”, segundo diagnóstico de Almerinda, o nosso anjo da guarda cor do ébano. 
(Não é pra me gabar, mas fui crismado por Frei Damião, em uma das suas missões e o meu padrinho foi o Monsenhor Celso Cicco, amigo do meu pai. E comi carne muitíssima mal passada, quase crua e sem sal num “cozinhado” de brincadeira feito por minha irmã Jojó e Teresa de Jorge Moura. E numa festa da padroeira ouvi de uma mocinha mais velha do que eu respondendo a uma proposta de namoro, que fosse “tirar o cheiro do mijo”)
Êê Ceará-Mirim velho de guerra
Dei uma ruma de “canga-pé” no Rio dos Homens; fui atleta de voleibol no Centro Social Leci Câmara e zagueiro do tipo “a bola passa mas a perna fica” do “Bacardi Futebol Clube”, organizado e patrocinado pelo finado Agnelo Sobral, representante dessa bebida. Fui aprovado no vestibular de macheza do Cipó de Maria Boca Rica e do Céu Azul, ´inda menino, quase de cueiros. Tive a regalia de ser protegido de Antonio Mulato, o cabra mais valente da região. De ter sido peladeiro com bola de borracha e tornozeleiras nos campos da maternidade, do motor e do cemitério.
Fui dançarino meio sem jeito, depois afamado pé de ouro, no Náutico, no Ipiranga e no Centro. Amigo de Minhém, Zé Félix, Antonio Domingos, Lulu, Paíto, Humberto “mofado”, Zé Roberto de Rafael Sobral, Zé Araken, Quinca boi, Mário Eugênio botador d’água e astro do Náutico Esporte Clube, de Misael violonista, Lourival bexinguento. 
Membro efetivo da “Turma da Esquina de Chico Dantas”, privando da companhia inteligente, laboriosa e esperançosa de Duca Moreira, João Batista, Ademar Araújo, Poti, Hamilton Dantas, Sizenando, Emanuel Cavalcanti, entre tantos outros.
Tomei banho de chuva de bica e corri chapinhando contra a correnteza das águas que desciam do Patu buscando o rio nas invernadas. Vi a cheia cobrir a ponte do Maceió e lavar o aterro. Fiz coro com os palhaços na chegada dos circos, andei atrás da banda de música. Vesti roupas e sapatos novos apertados na festa da padroeira. Ganhei entrada de cinema como prêmio de leitura no “Externato São José” do extraordinário educador José Tito Júnior.
Fui aluno de dona Auta, mãe de Maria Xandu – que Deus as tenha – e de dona Lourdes de seu Agenor, mulher de Lulu da farmácia. A benção dona Edite, poeta inédita por vocação e genética, mãe de meu amigo Quinca, Ísis, Janete, Vicente e o jovem Agenorzinho.
Vibrei com os seriados, comédias, desenhos e dramas do cinema de Jorge Moura, uma fábrica de sonhos. Comprei cavaco chinês e confeitos a Inácio Magalhães de Sena e balas Cuquita a Chico Dantas. Cortei cabelo com Erso, pai de Bubu da mercearia.
Fiz política comunitária com Chicó Evangelista e Sebastião Palhares e votei em Emanuel Cavalcanti e depois Sebastião Palhares e Franklin Marinho, sucessivamente, para vereador. Nunca transferi meu título de eleitor para ter um pretexto de estar ligado à minha cidade.
Andei no primeiro ônibus que fez a linha Ceará-mirim a Natal, de propriedade de Lauri Farias. Comi pão quentinho com a manteiga escorrendo nos cantos da boca na padaria de João Neto. Tomei sorvete e picolé no carrinho de Zé Gago e me fartei de tabletinhos de maracujá pecaminosos de tão gostosos feitos por Dona Ester.
Ensinei História e Ciências na Escola Técnica de Comércio da paróquia, com 16 anos de idade. Passarinhei pelas bandas do Diamante, Capela e Várzea de Dentro, Lagoa Grande e Ilha Bela. Menino ainda defrontei-me com a visão do paraíso – Muriú, em seu esplendor ainda na juventude dos veraneios – e duvidei: será que Deus fez alguma coisa mais linda do que isso?
Privei da amizade, menino ainda e já ligado aos mais velhos, de Clóvis Soares, Leó Cavalcanti, Manoel Pereira, Betinho Dantas, Major Onofre Soares, Aluizio Pipilza, Cleto Brandão, Chicó Pereira, Antão Barreto, Edson Cavalcanti, Chico Padre, Doutor Canindé, seu Aurelino, Paulo Sobral, João Neto, Jorge Moura, Valmir Varela (dona Celina foi minha professora de piano), o velho e saudoso Manoel Marques, José Costa, Chico Leopoldino, Rafael Sobral... são tantos ...e me deixei levar pela memória aperreada contrariando a recomendação de que o esquecimento de nomes tira mais créditos do que se conquista pela menção. Corro esse risco.
Que dirá dos “anjos” da cidade: Luci Varela, Rosa Brandão, as Alices, de doutor Canindé e de Manoel Marques (Leda Marques de Hélio Venâncio tem a quem puxar), Dona Sinházinha de tão curta lembrança, madrinha de Auta, esta, mulher de Otávio Leandro que vendia coco na feira e assinava ponto todos os dias no “Café de seu Cleto”, dona Hilda Buriti, irmã da poeta Anete Varela...
E dona Santinha, minha gente, cria da casa de Manoel Pereira, com uma asma renitente, sem saber que a sua criação de gatos era o motivo maior da doença...!
Como o poeta Neruda confesso que vivi.
Ceará-Mirim é o meu porto seguro quando velejo pelos incertos mares da memória, e não me venham com porquês, ora! Porque lugar bom para atracar o barquinho solto num tempo de tsunamis, é onde a gente se sabe protegido por uma estória cheia de calmarias.
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Ciro José Tavares
9 de fevereiro às 08:35
 
O amor pelo vale verde emerge no texto de Pedro sem dimensões. Ele vive, no seu mergulho telúrico, nos nossos corações e no coração da cidade. Ah Pedro como você faz falta!
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O amor de Pedro e Ciro pela terra dos canaviais me lembra, com o mesmo fervor, o carinho de Nilo Pereira e Edgar Barbosa. CG

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