domingo, 15 de fevereiro de 2015


Outros problemas


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República

No artigo da semana passada (“Rigidez e reforma”), embora defensor declarado da doutrina do “stare decisis”, eu escrevi sobre um dos maiores problemas que a adoção de um modelo de precedentes vinculantes pode causar: o engessamento do sistema jurídico. A ideia hoje é desenvolver essa crítica à doutrina dos precedentes vinculantes, abordando, ainda, outras “desvantagens” da sua adoção.

Começo suavemente, fazendo uma ligação entre a rigidez da doutrina dos precedentes vinculantes com a morosidade no aperfeiçoamento (“slowness of growth”) do Direito. Há quem diga que essa rigidez da doutrina faz como que o desenvolvimento do Direito do país que a adote seja lento, tomado o termo desenvolvimento como alteração do Direito para atualizá-lo com as mudanças de valores, com o progresso da ciência etc. Diz-se que, além de demorar bastante para que uma decisão chegue, por exemplo, a Suprema Corte do Reino Unido, a doutrina do “stare decisis”, por seus próprios termos, exige a obediência às decisões passadas, o que, os juízes, sobretudo os mais conservadores, tendem a seguir à risca.

Não resta dúvida de que, sob condições sociais em alteração ou em áreas do Direito para quais a legislação não tenha sido atualizada, atribuir valor sagrado ao precedente é equivocado. Levaria a uma estagnação prejudicial do sistema, embora, aqui, deva ser feita uma observação: um sistema jurídico rigidamente baseado na lei em sentido estrito também pode ser estático. Aliás, por esse simples fato, tende a ser mais estático, porque os câmbios de jurisprudência são bem mais comuns (pelo menos devem ser) que as alterações na lei.

O fato é que, em um sistema baseado no primado da lei (ou em qualquer sistema), algum grau de liberdade na jurisprudência, em prol do desenvolvimento do Direito, é mais que salutar. Afinal, como explicam Roberto Rosas e Paulo Cezar Aragão (em “Comentários ao Código de Processo Civil”, 1998): “Indubitavelmente a jurisprudência tem se antecipado às legislações na solução dos conflitos de interesses. Não poderia ser de outra forma porque a legislação é mais estática do que o juiz. A letra da lei perpetua-se, esperando a interpretação judicial quando suscitada nas controvérsias. No entanto, a evolução da sociedade é surpreendente. As relações humanas cada vez mais intensas impõem o chamamento judicial aos debates nos litígios, substituindo o código que, às vezes, tem contra si a revolta dos fatos na expressão de Gastão Morin”.

Outro problema reconhecido na doutrina dos precedentes vinculantes, sobretudo na forma clássica como aplicada na Inglaterra e nos Estados Unidos da América, é a sua complexidade (“complexity”).

Tomemos o exemplo da Inglaterra. A complexidade da doutrina do “stare decisis” decorre, primeiramente, da existência, ali, de quase um milhão de casos reportados (e esses dados já devem estar defasados), não sendo fácil achar todos os precedentes relevantes para a decisão de um caso, mesmo com o uso de ferramentas eletrônicas de ponta. Isso sem falar que, dos precedentes encontrados em uma pesquisa, para citação em um caso em julgamento porque supostamente adequados, muitos não são realmente relevantes para esse caso, muito embora, num primeiro momento, pudessem parecer que sim. Essa complexidade no sistema inglês é enxergada por juristas tanto do “common law” como do “civil law”, e providências têm sido tomadas para minimizar o problema. Eva Steiner (em “French Legal Method”, 2006), minha orientadora no PhD no King’s College London - KCL, lembra, por exemplo, que, em 2001, foi emitida pelo “Lord Chief of Justice” uma diretiva estabelecendo “uma série de regras sobre como os precedentes deveriam ser citados perante às cortes e isso foi feito com o objetivo de restringir a citação à precedentes que realmente sejam relevantes e úteis para o caso em julgamento”. Ademais, a própria doutrina do “stare decisis”, como foi construída, é complexa. Só para ficar em um ponto: diferentemente do que muitos pensam, a única parte do precedente realmente vinculante é sua “ratio decidendi” ou razão de decidir e, muitas vezes, em determinado precedente, não há uma distinção precisa entre os meros “obiter dicta” e a “ratio decidendi” do caso.

Entretanto, registre-se, aqui, um ponto favorável ao modelo brasileiro de súmulas (incluindo a Súmula Vinculante do STF). Com as súmulas, esses problemas, em princípio, não existem. Ao contrário: através da súmula, identifica-se, rapidamente, a jurisprudência firme, cristalizada de um tribunal acerca de variados temas jurídicos. Ademais, o enunciado da súmula, como verdadeiro extrato ou compêndio de conteúdo eminentemente jurídico, consistente na interpretação de questão de direito, de várias decisões anteriores no mesmo sentido, não possui afirmações “a latere” (as referidas “obiter dicta”) e todo o seu conteúdo é considerado essencial.

Bom, mesmo fazendo essas críticas (e poderia fazer outras), continuo um entusiasta da adoção de um bom modelo de precedentes vinculantes. E, agora, ninguém poderá me acusar de enxergar um lado só. 

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