quarta-feira, 29 de abril de 2015

  



TIO SPENCER
Ciro José Tavares.

A desconhecida saudade invadiu-me diante da fotografia e do texto publicados pela confreira Gracinha Barbalho acerca da passagem de um circo por Ceará – Mirim Permanece fixa nos meus olhos aquela cobertura de lona, fria, cinzenta, empoeirada e gasta pelo tempo. Armavam-na no largo espaço, entre a Rua Grande e a Matriz de Nossa Senhora da Conceição, ali perto o Colé...gio Santa Águeda. Pelas janelas da casa de Adelle era possível ouvir a azáfama e ver o mundo de diversões ser erguido com enorme sacrifício. Os espetáculos eram relativamente pobres, mas palhaços e acrobatas encantavam a assistência. Sentíamos o vazio quando se despedia depois de desarmado. Ficava o espaço, o habitual trajeto de minhas avós inesquecíveis, que o atravessavam quando iam às missas matutinas.
Já estudante de Direito, no Recife, as lembranças daquele circo humilde foram-me devolvidas à memória ao ler O Chapéu Mexicano, de Aldous Huxley, seu livro de seis curtas novelas, uma das quais ele relata a visita do um circo à cidade onde, ainda menino, passava suas férias e longos feriados, como a Semana Santa, Na companhia do seu tio Spencer.
A vinda do circo à cidade acontecia com frequência durante as quermesses do tempo Pascal e a principal atração era a récita Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Huxley conta que assistiu a representação duas vezes, não pela história que conhecia bem, mas pela beleza da jovem atriz que fazia o papel de Maria Madalena, por quem ficou perdidamente apaixonado.
Pela terceira vez foi assistir ao espetáculo, tendo o cuidado de antes tentar conhecer de perto sua amada misteriosa, mas soube que se casara. Assim mesmo quis vê-la da plateia na cena em que aparecia. Ficou tomado por total decepção. A Madalena dos seus sonhos não era a mesma. Esvaíra-se a beleza, substituída por uma mulher deformada, adiposa, evidente displasia mamária, cabelos desgrenhados e faces exageradamente maquiladas talvez para esconder as marcas dos desgostos e necessidades. Cabisbaixo retirou-se ao final, repetindo baixinho como se fosse uma prece de adeus: “Minha paixão por Madalena durou três quermesses”.
E pergunto quantas paixões não teriam nascido durante as quermesses de Ceará-Mirim? Uma eu posso revelar e garantir, aconteceu comigo, pois a expressei em alguns poemas. Um deles, Farewell Adelle, publicado no livro As Elipses de Phoenix, focado na namorada Zuleide e na minha avó Adelle, que recebeu o seguinte comentário do mestre Nilo Pereira: “Você me manda o belo poema intitulado Farewell Adelle, que se traduz na citação de Jorge Luis Borges: ‘La eternidade espera em la encrucijada de estrelas.’ Isso diz tudo. Mas você completa Borges com seu poema verdadeiramente maravilhoso. Pouca coisa se escreveu sobre o Ceará- Mirim como você nesse cântico a Adelle, minha primeira professora inesquecível. Os poetas falam à alma da gente como se fossem anjos no seu coro sideral.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário