sexta-feira, 19 de agosto de 2016

HOMENAGEM



Em homenagem a FRANKLIN JORGE, transcrevo artigo que publiquei neste blog em 30 de Maio de 2007 para que não se esqueçam desse extraordinário escritor da terra dos canaviais.

SOBRE O SANTO OFICIO

[Por Carlos Roberto de Miranda Gomes*]

No ensejo em que Franklin Jorge comemora o seu blog O Santo Ofício, tenho a alegria de oferecer o meu modesto comentário ao fato.
O estimado escritor responsável pelo documento virtual conseguiu inovar a divulgação da cultura com a maior dignidade, fugindo do trivial das notícias sociais ou enfoques particulares ou corporativos, para ofertar uma dimensão da realidade política e cultural da terra potiguar.
Através desse blog desfilam os mais festejados autores da literatura universal e, com maior intensidade, os escritores pátrios, que nos permite uma leitura de excelentes trabalhos, cujo volume já publicado virtualmente, comporta uma coletânea impressa.
Parabéns pela coragem de tentar fazer cultura neste palco de tantos preconceitos e apologia do supérfluo.
A divisão temática do blog nos leva e enleva para uma altitude de extremo sentimento com o enaltecer de pessoas notáveis e fatos que fizeram história.
Para exemplificar o que estou a dizer, resolvi destacar o caderno ‘séries’, com sua localização territorial sob títulos sugestivos como: O ouro de Mossoró; O céu de Ceará-Mirim; O spleen de Natal; Abaixo do Equador; O ouro de Goiás; Assu, Mitologia e Vivências e Histórias Brejeiras, todos da autoria do editor do blog.
Em cada um deles é possível conhecer figuras interessantes como a foliona Cristina dos Pimpões, a leitora desordenada D. Zélia; o viageiro Rogério Queiroz; o estoicismo de D. Cícera Nogueira; a escritora Zenaide Almeida ou da simplicidade da rezadeira D.Maria Etelvina, todos da terra de Santa Luzia.
Na planície dos canaviais a lembrança da poetisa Adele de Oliveira, mestra de Nilo Pereira e Edgar Barbosa e tantos outros bem desenhados na série O spleen de Natal, como a cidade mítica de Natal e a Ribeira profunda cantadas por Navarro; recordos de Palmira, José Maria Guilherme, do português Olívio Domingues.
Nas narrativas da geografia física e humana ‘Abaixo do Equador’, existem registros do cotidiano feitos com graça e emoção, resultado das andanças pelo outro lado da linha do Equador, com passagens por Belém, o continente Amazônico, o extremo norte – Xapuri, Seringal, Rio Branco, a zoologia do Acre, o Padre José, vigário de Xapuri, o Bosque dos Buritis passeando com Carmo Bernardes, memorialista sagaz.
Um aspecto realmente singular se inclina para a singeleza da forma de dizer de Franklin ao retratar pessoas e lugares, quando descreve:
“O verso de José Décio Filho dança entre os monumentos da velha cidade enclausurada no tempo. Repercute, deliciosamente, em nossa sensibilidade imantada de pulsação telúrica: ‘Goiás...Que nome largo, longe’. Doutora Amália o recorda freqüentando a Pensão Manduca e fazendo parte da rapaziada do Largo do Moreira, na Cidade de Goiás, onde morreria voluntariamente, aos 58 anos, em plena maturidade. José Décio era moreno, esguio, de olhos penetrantes e cabelo negro com topete, quando, em 1946, escreveu o Poema dos homens amargos, que sua amiga lê para mim, em sua casa de Goiânia, à sombra de árvores seculares –


O melhor é não rir atoa

a-fim-de se parecer feliz.
O melhor é não se importar
que os outros nos achem tristes ou alegres.
É certo que teremos de rir
não só dos nossos próprios ridículos
como dos aleijões alheios.
Um riso duro, impiedoso,
Quase um arremedo de choro
que enegrece o coração cansado...


Lá para as tantas, ainda Franklin completa:
‘Pouco sei sobre o poeta, exceto que morreu em 1976, amou a sua terra e agora é ele próprio um nome que vem de muito longe, para acompanhar-me neste passeio pela cidade sagrada dos goianos, onde viveu a mocidade e escreveu seus primeiros versos cheios de sortilégios verbais. Caminho pelas ruas da velha cidade de Goiás repetindo como quem reza o verso emblemático e misterioso que o vento toma de minha boca e o leva aos confins da terra azul, percutindo-o na minha nostalgia do paraíso perdido da infância.’
Numa passagem por Assu, visita Renato Caldas e esse encontro está narrado com a verve e autenticidade do entrevistado:
‘Você é o primeiro jornalista a entrevistar-me, afirma Renato Caldas, abanando-se com um jornal velho dobrado duas vezes. Sem camisa, o tórax muito branco e pingando suor, sentado diante de mim. Porém, nessa idade, já não tenho memória nem vontade de lembrar-me do passado. Depois de tanta vida vivida e decepções, o melhor, mesmo, seria esquecer tudo... Tudo...
O passado é uma carga pesadíssima. E temos que carregá-lo, ainda assim, com os nossos achaques... Eu ia fazer a sesta, sagrada depois do almoço, quando senti a urgência de falar-lhe. Do bar para casa, vinha pensando em suas palavras e no seu empenho para resgatar a memória do Assu e dar vida aos mortos... Pensei que não seria justo privá-lo disso... ‘

Sem programar, Franklin descobre fatos importantes da nossa província, quando retrata O velho da Redinha, no caderno Histórias Brejeiras, que descreve o lugarejo da antiga Natal, lugar preferido pelos veranistas, numa época em que o transporte era de barco e a luz era de lamparinas, vejamos:

Seu nome era Raimundo, que pensa não ter mais família no mundo - o impaludismo reduzira a população do município. Bah, naquele tempo morreu gente como bêia... E continua:

‘Quando cheguei aqui o transporte era o bote. Cada passageiro que ia ou vinha de Natal, pagava quinhentos réis pela viagem. Depois, Luiz Romão botou uma lancha para fazer a linha, cobrando deztões da passagem. A primeira lancha, chamada Carminha, não levava mais de dez pessoas. Pertencia a Vital Correia, um homem rico do Ceará-Mirim. Com a chegada dessas lanchas, os botes foram caindo em desuso e desaparecendo. O embarque e o desembarque eram feitos no trapiche, construído em madeira. A Redinha tinha boteiros famosos, com o Manoel Pedro e Manoel de Paula, proprietários do São Paulo; Joaquim de Dona, que explorava os botes Campo Grande e Sergipe. Toda essa gente, tão considerada em sua época, está morta e enterrada há muito tempo.’
Esse relato levou-me à minha infância/adolescência, pois na Redinha passei, pelo menos, quinze veraneios (1948 a 1962). Ali encontrei já um motor a diesel que funcionava até às 9 horas da noite, depois era o ‘breu’, mas fiquei conhecendo bem a geografia do lugar e aprendi a andar entre as suas pedras, apenas com o medo do ‘fogo fátuo’. Lembrei-me do meu irmão Fernando, cantando a música de sua autoria –


Redinha, praia linda e sem igual,

poema lírico e imortal, 
onde nasceu nosso amor. 
Redinha em teus recantos lindos
lembra-me o tempo de menino colhendo búzios de multicor. 
Redinha de casa de taipa e bangalô, 
onde não há escravo nem Sinhô
– todos ali são iguais. 
Redinha volta de novo ao teu seio
para eu viver sem receio aqueles tempos ideais.


As histórias contadas no Redinha Clube sobre a construção da igrejinha pelo Sr. Barroca, do furto da Santa, da nova igreja de pedras feita pelos veranistas. As travessias em dia de jogos no barco de “Ferrinho” suportando as brigas dos torcedores rivais do ABC e América, com destaque para Seu Maranhão e o risco do bote virar. O Rio Doce explorado de bicicleta.
Outra entrevista pungente é sobre Dona Cícera – a Nossa Senhora dos Pobres, nascida e criada em São José, bairro de gente humilde e trabalhadora, uma mulher ocupada com o povo na condição de missionária do bem, movida apenas pelo desejo de consolar os aflitos e servir a quem precisa. Todos os dias ela está na casa do povo e o povo está na sua casa. Por isso, embora pobre de bens materiais, sente-se rica da graça de Deus. Sobre ela narra Franklin:

‘De compleição frágil, pouco mais de um metro e meio de altura, Dona Cícera está sempre em grande atividade, indo e vindo pelas ruas da cidade, socorrendo, ouvindo, orientando, resolvendo os problemas dos outros, dispensando a todos, indiscriminadamente, esperança, sem regateios nem falsas promessas. Ela não está jogando palavras fora quando diz que vive ocupada com o povo, isto é, com os sofridos e os desesperados que batem à sua porta, como náufragos em busca de uma bóia salva-vida -- que pode ser uma simples palavra de conforto e encorajamento --, de um toque, pois sempre alguma coisa acontece quando, literal ou metaforicamente, tocamos alguém.’ 

Fico por aqui para não tirar o gosto pela leitura integral do texto publicado no blog.

Já me alonguei e vou terminar com o Navarro Andando, onde Franklin desnuda o nosso imortal pintor/boêmio:
‘Beira-Rio não é boteco somente, explica Navarro entre garrafas cantantes, num chão escuro da Ribeira, de pedra, entre os começos da cidade e a margem esquerda do rio. Pátria dos apátridas, diria noutra parte do seu poema, composto da prosa de embarcadiços, de mulheres-damas e de boêmios, derradeiros boêmios que descem nas correntezas noturnas da Rua Chile. Reino de Francisquinha, Dona Francisquinha, proprietária de sete bordéis, uma das deusas tutelares da Ribeira, bairro por excelência comercial, devasso e cosmopolita.
Navarro caminha. Sente o chão da Ribeira sob os pés, ao caminhar de sentidos alertas, entregue à magia da música de Caetano, nesse momento tocando em todas as rádios da cidade. Um hit de época quer ver Irene dar sua risada. Todos querem ir para alguma utopia. Navarro haveria de querer também rir com Caetano, que aparece de repente, sem lenço nem documento, eletrizando com a sua música.
Na pedra do cais, o porto, a enseada, o mirante, o abrigo, a hospedaria e, correndo para o mar, o rio, o velho rio Potengi que já existia antes do surgimento de la Ciudad de los Reyes. O rio fala-lhe pela bocarra úmida de suas gamboas.’
Concluindo, diz Franklin:
‘A velha Ribeira já se embuça de sombras. O deserto é geral. Gatos e cães vadios se ajuntam no Beira-Rio, onde Navarro escreve uma prosa viril feita de sol e salsugem. Com a nitidez cortante de um desenho aquarelado de sombras e de luz.’
É uma crônica de vida que todos devem ler no original, retratando esse nosso mito, amado por Cascudo e por onde toda a cidade encontra a sua presença.
Ainda que exaustivas de transcrições termino estas linhas com Franklin Jorge:
‘Newton Navarro (1928/1991) pertenceu muito à nossa época para que possamos ter a seu respeito opiniões estritamente artísticas. Enfant terrible da segunda geração do modernismo potiguar, foi um ser múltiplo e forjou ao longo de três décadas o misterioso e fascinante personagem que nos legou e contribuiu algumas vezes para eclipsar o seu próprio criador.’
*Da Academia de Letras Jurídicas e do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Texto de abertura do blogue


O SANTO OFICIO
[Mossoró, 24 de Março de 2007]

[Por Franklin Jorge]

Começo neste dia a escrever o meu blogue, inspirando-me na recordação de uma ligação da poetisa Zila Mamede, que numa tarde já remota, leu para mim, ao telefone, versos e fragmentos de escritos jornalísticos daquele que me disse ter sido o seu mestre, o poeta, crítico e jornalista Antonio Pinto de Medeiros, signatário da coluna “O Santo Ofício”, uma espécie de tribunal literário instalado em Natal, por muito tempo, em permanente e aterradora atividade. Poucos conseguiram escapar de suas sentenças irrecorríveis, o que o malquistou com metade da população de literatos da cidade e lhe granjeou a admiração e o respeito da outra metade, que vibrava ao desfrutar com a agonia dos confrades ardendo na fogueira de seus escritos.
Foi Antonio Pinto um leitor mau humorado e cheio de verve. Exigentíssimo, sua amizade não servia de salvo-conduto para nenhum escritor que botasse livro na praça. Porém, homem inteligente que era, chamou para perto de si os melhores talentos da época, formando uma espécie de movimento literário, animado só pelos bons e excelentes.
Amparado em ampla e variada cultura, contribuiu para a elevação do nível da nossa produção literária, atraindo para si a animosidade da província dorminhoquenta que se abalou com a pertinência de sua crítica apta a distinguir o trigo do joio. Eleito para a Academia Norte-rio-grandense de Letras, foi tomar posse de alpercatas, contrariando assim a norma acadêmica feita de exterioridades e ouropéis.
Tornou-se, por seu modo de ser, uma lenda urbana ainda em vida. Uma lenda que teima em persistir na memória de uns poucos. Sua mudança para o Rio de Janeiro, onde continuou atuando no jornalismo, foi recebida com alívio pela maioria dos nossos literatos, especialmente por aqueles que em algum momento de sua militância foram alvos de seus dardos envenenados.
Grande incentivador dos novos,invectivou especialmente os medalhões e a cultura oficial, embora escrevendo em um jornal que era a própria voz do oficialismo. Poeta, escreveu um verso longo, schmidtiano, moroso e convencional, completamente avesso à velocidade de sua crítica de leitor bem informado e infenso à promiscuidade do elogio gratuito e recíproco. Para ele, era o mérito que contava e dava as ordens. Deu-nos, porém, um belo título - “Rio dos Ventos” - e exerceu, através do jornalismo cultural, grande influência sobre os jovens intelectuais e artistas, inclusive os da palavra, como a própria Zila, Myriam Coeli, Dorian Gray, Newton Navarro, Luis Carlos Guimarães, Berilo Wanderley, a quem sucedi na “Tribuna do Norte”, ao escrever já numa outra época e em um outro estilo, a crônica cultural da cidade do Natal.
Era Antonio Pinto de Medeiros cheio de idiossincrasias, mas forneceu através do exercício da crítica da cultura o combustível necessário à efervescência intelectual e estética de uma cidade com vocação para o cosmopolitismo. Fez-se, portanto, o mestre de alguns jovens ávidos de experiências e de novidades. Pode-se dizer dele que alargou e iluminou o caminho dos novos, orientando-os e prescrevendo-lhes, de uma forma aparentemente ditatorial, uma dieta estética antenada com o melhor da produção literária off Natal. Esta, a meu ver, a sua grande obra, numa terra em que todos são reis ou carregam reis na barriga.
Sempre os mais velhos que o conheceram de perto,como o escritor Nilson Patriota, presidente do Conselho Estadual de Cultura, têm procurado associar-me, como escritor e jornalista, ao criador do “Santo Ofício”. Creio, porém, que há um pouco de exagero e bajulação nisso, como ocorre às vezes nas relações entre velhos e novos. Afinal, só temos em comum o gosto pela crítica e a prática do jornalismo. Nessa noite já remota do telefonema de Zila, evocada aqui por causa da expropriação do título da famosa coluna criada em “A República” por Antonio Pinto de Medeiros, disse-me a Autora de "Navegos", ao concluir ao telefone a leitura de uma página do autor de “Um Poeta à toa”, que eu lhe parecera sempre, ao escrever, a reencarnação do seu querido e inesquecível mestre e amigo, talvez mais pela ousadia de dizer do que pela forma. Á memória de mestre e discípula dedico estas linhas de estréia.

Franklin Jorge
PÁGINAS DE UM ÁLBUM
[Da Redação]
O escritor Franklin Jorge em 1978, fotografado por Ivanizio Ramos, seu colega de redação da Tribuna do Norte.Muito querido por seus companheiros de jornal, posou para mais de 5.000 fotos, numa época em que as máquinas não era digitais e os repórteres-fotográficos recebiam uma cota diária de filmes para documentar os fatos.Sempre sobravam filmes virgens.
Frequentemente essas sobras eram aproveitadas em registros extra-jornalísticos que fixavam companheiros de trabalho ou cenas que no decorrer da jornada chamaram a atenção do repórter-fotográfico. Franklin tornou-se, assim, o modelo predileto de vários fotógrafos com os quais fazia duplas.
Talvez seja pertinente registrar também que foi mais ou menos nesse período de sete anos em que Franklin trabalhou "no jornal dos Alves", que o jovem repórter ganhou, do escritor Luis da Câmara Cascudo, o apelido de "Caetano", em alusão ao cantor baiano.
.Abaixo, o jovem escritor norte-riograqndense fotografado por Ivanizio Ramos usando um amuleto presenteado pela escritora Zélia Gattai para dar-lhe sorte e atrair bons fluidos. Arquivo do Instituto Franklin Jorge [em organização]

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