O ENGENHO DIAMANTE
Pedro Simões Neto, Patrono da ACLA


A última estrela se apagou. Vejo a “barra” do dia se aproximando, varrendo os restos da noite. 
Daqui, do meu mirante, concluo que todos os nossos alvoreceres são iguais, é a emoção, o momento que os torna especiais. Já vi muitos nesses sessenta e tantos anos de sobrevida. No entanto, distingo alguns que sobrevivem e se eternizam.
Aquele instante que me colhia a caminho do Diamante, a partir da descida da rua São José e o cruzamento da linha do trem na Rua Grande, passando pelo aterro, depois de atravessar a ponte. O dia começava a se derramar, de fato, entre o engenho Carnaubal, de Maneco França e a casa grande do Guaporé, já ruinosa, iluminando o percurso e favorecendo a beleza das orvalhadas e desperfumadas florezinhas selvagens, nascidas à beira da estrada. 
Então, a minha crença em Deus era fortalecida pela convicção de que só alguém com tanto poder e tanto amor poderia conceber um mundo assim tão belo e tão perfeito.
Conversava como um tolo ou um doidinho justificado pela infância a meio caminho da adolescência, com os seres vivos madrugadores. Ali, o alerta majestoso de um galo, acolá, os cantos denunciadores de pássaros invisíveis, ou fugidios, ou o mugir do gado pastando à beira das cercas. O riso das crianças recém-despertas. Até mesmo o rinchado dos burros.
Dava-me bem com as lagartixas e até hoje tenho um relacionamento no mínimo amistoso com os dessa espécie. Quem sabe não data dessa época, quando eram os únicos animais que respondiam ao meu cumprimento ou concordavam com todas as minhas argumentações, com um balanço positivo de cabeça?
A estranha conversa com os animais era um modo de afastar o meu medo. Sempre recorria a essa estratégia quando me sentia só e desamparado. Sabia que nunca estava sozinho, se Deus estava comigo. Mas era tão distante e inalcançável o meu Senhor. Voltava-me então para Cristo, cuja imagem, diferentemente do Criador, podia mentalizar e à compaixão da Virgem da Conceição, padroeira da cidade. 
É porque imaginava que àquela hora, mal vencida a noite, alguns seres medonhos pudessem estar vagando, perdidos, desencontrados dos caminhos do breu.
Para minha sorte, aqui e ali encontrava alegres grupos de trabalhadores, parecendo um bando de pardais em algazarra. Alcovitavam o café quente e forte com um cigarro de fumo de corda. Assuntavam a falta ou o excesso de chuvas. Temiam os transbordamentos dos canais que cortavam os alagadiços e a secura das socas. A cana de açúcar era caprichosa, exigente, tudo teria de vir na medida certa.
Depois, o sol já apontando na linha do horizonte, os receios se dissipavam. Nascença – que nome mais adequado - despontava no meio do vale, como uma princesa destacando-se entre os cortesãos: bela, imponente, majestosa. Não conhecia o famoso balneário, mas o intuía na imaginação. Muito tempo depois, estive lá algumas vezes a convite de Roberto Varela.
Daí em diante, os pés se aligeiravam na ânsia do Diamante. De Nascença já sentia a volúpia do banho paradisíaco na fonte natural de águas cristalinas. Meu pai tinha permissão do próprio senador Augusto Meira para fruir da propriedade, extensivo à família. De lá, o pai nunca saía de mãos abanando. Deparava-se sempre com uma cornucópia recheada de fruta-pães, bananas, cocos verdes e canas caianas selecionadas, como testemunho da valia da amizade com o proprietário.
Abria a cancela e pronto: estava em território independente, único, especial. Mesmo que fizesse parte de uma federação de tanta beleza, o Diamante excedia, superava a própria superação da terra dos verdes canaviais.
O velho Mané Chico, cliente do meu pai e homem da confiança do senador, fazia as honras da casa. Recebia-me, aviava alguma raríssima providência, punha-se ao dispor do que precisasse, e descia para o alagadiço com os seus filhos e uma leva de cambiteiros e cortadores de cana.
Atravessava uma nova cancela, já dentro da propriedade, e o Éden, afinal, estava ao alcance da visão, à minha disposição. Deliciava-me com o prazer solitário da fruição daquela maravilha da natureza. Fazia questão de registrar, com gulodice e muita atenção, comendo lentamente pelas beiradas, a memória de tudo que via, especialmente dos assaizeiros e outras espécies altaneiras que o proprietário trouxera do Pará, sua segunda morada.
Augusto Meira herdara a propriedade do pai, Olinto Meira, ex-presidente da província do Rio Grande do Norte e do Pará, que a tivera de Miguel Ribeiro Dantas por casamento com Dona Maria Generosa, sua filha. Nas casas dos trabalhadores lia-se a inscrição DAM, que depois vim a saber que significava “Diamante de Augusto Meira”.
Andava prazerosamente no pequeno bosque de árvores altas e copadas, quase esquecido do medo das cobras, depois que fui surpreendido, em plano banho, por uma serpente que também resolvera se banhar. Neste instante, esqueci-me do pavor que sentia do réptil, observando o movimento ondulante e gracioso que fazia dentro da água. Depois, abandonei respeitosa e medrosamente o local, então marcado momentosamente como território da elegante mas temível serpente.
Havia um descampado que era tido como extensão do terreiro da casa grande, à margem do canavial, com o chão sempre atapetado por palhas secas de cana. E lá se destacava uma árvore que servia de abrigo aos trabalhadores – uma mangueira, talvez a mais alta e copada das que já tinha visto. 
O clima era quente e úmido, embora uma brisa abençoada vez em quando nos refrescasse. E um aroma adocicado solto no ar, que me dava a impressão de grudar na pele suarenta.
Aliás, o baixo vale era todo aromático. Cheiro de rapadura, mel de engenho e do bagaço da cana em estado de putrefação. Era a sua marca registrada. Um odor que se pereniza na memória e que, mesmo distante, o sentimos quando evocamos a cidade.
Hoje, com olhos de uma infância saciada e feliz, essa mistura de aromas chega-me como uma benção, uma unção, uma espécie de incenso, de óleos bentos, e o vale inteiro é transformado num turíbulo, num incensório, na minha lembrança reverente e agradecida.
Mané Chico já se encantou. O Diamante passou por inúmeros proprietários e nunca mais o visitei, nem sei avaliar o seu estado. Talvez esteja cheio de “modernosidades”, talvez. Talvez a estética dos sucessivos proprietários o tenha modificado, talvez. Ou, o mais temível e a minha recusa em revê-lo, talvez tenha-se desfigurado, talvez.
É nesse ponto que eu retorno todas as madrugadas, quando desperto, à última estrela, como agora. E a converto num farol, num candeeiro, num facho, num tição ou numa brasa. Para que me alumie sempre a memória, eternizando as sensações, sem nenhuma submissão às mudanças – que nem um quadro ou uma velha fotografia que registra um momento, roubado ao tempo.